quarta-feira, 6 de junho de 2007

A visita de Bush e o etanol brasileiro

Desmistificando o acordo sobre o etanol brasileiro

Em visita ao Brasil no dia oito de março desse ano, o presidente dos EUA, George Bush, veio fazer uma série de acordos com o presidente Lula. Esses acordos envolvem o tão famigerado “biodiesel”, mas especificamente o que se refere ao etanol produzido a partir da cana de açúcar. Há muito tempo o Brasil se destaca na produção desse tipo de combustível, que trouxe muito mais miséria e devastação ambiental do que benefício pro povo brasileiro.

O encontro teve um caráter mais político que diretamente econômico, embora os interesses para o capital internacional e para uma parcela da burguesia nacional são de grande relevância. Os EUA, embora seja um grande produtor de petróleo e seus derivados, produzem muito mais do que necessitam para, entre outras coisas, abastecer sua enorme frota de veículos. Com isso, dependem da importação realizada a países os quais mantêm relações conflituosas, principalmente Irã e Venezuela. O governo brasileiro faz jogo duplo, mantendo um discurso progressista junto aos seus aliados da América Latina, mas sem quebrar relações cordiais com os ianques. Desta forma, Bush, após perder as eleições parlamentares no seu país, implementando uma política internacional desastrosa – inclusive prejudicando o próprio interesse do imperialismo norte-americano –, aproveita a grande comoção internacional a respeito do aquecimento global para anunciar a política de substituir parte do combustível fóssil por combustíveis menos poluentes como o etanol. De quebra, minar a influência do seu adversário venezuelano, Hugo Chaves.

De fato, o etanol polui cerca de 70% a menos do que os combustíveis derivados do petróleo, mas a que preço? Para se extrair álcool suficiente para suportar as exportações crescentes em decorrência de acordos como esse, precisaríamos ampliar a área de cultivo de cana de açúcar. Essa monocultura é baseada na sua grande maioria em grandes latifúndios, responsáveis pela destruição de extensas áreas de mata atlântica e de serrado. Se a justificativa é a diminuição do aquecimento global, estaríamos assim colaborando com o seu aumento, já que a devastação de áreas de florestas é uma das principais causas do aquecimento em curso. Sem falar na necessidade do uso de agrotóxico, que causa o desequilíbrio ecológico e compromete a saúde da população.

O cultivo da cana de açúcar tem uma história de exploração e miséria em nossa sociedade que vem desde da época do Brasil colônia, quando foi uma das principais atividades financiadoras do tráfego e escravidão de vários povos negros, arrancados da África e forçados a sustentar a riqueza da nossa nascente elite. De lá para cá, a escravidão acabou na lei, mas não na prática, pois vários trabalhadores rurais são obrigados a viver em condições subumanas em troca de algo que mal dá para sua sobrevivência. Por se tratar de uma monocultura, milhares de pessoas que poderiam com pequenas propriedades (cultivada de forma familiar ou coletiva) estar produzindo alimentos mais baratos e de maior qualidade para o campo e a cidade, são obrigados a fugirem para as capitais, inchando as favelas e colaborando com o aumento da miséria e, conseqüentemente, da violência urbana. Em estados nordestinos como nas Alagoas, pode-se ver por toda parte o rastro de miséria deixado pelos grandes usineiros que controlam a vida política há séculos. Isso se faz presente seja nas antigas áreas de Mata Atlântica (hoje praticamente inexistentes), seja na capital Maceió, constituída em sua maior parte por periferias localizadas nas grotas onde a condição de vida beira ao caos (boa parte composta pelos refugiados da cana), seja também no interior em um regime de semi-escravidão e com histórico de violência contra sindicalistas rurais e aqueles que ousaram levantar a voz contra a opressão dos usineiros.

Na imprensa burguesa e por parte do governo, é passado a notícia que seria vantajoso para os brasileiros esses novos acordos, pois poderíamos liderar as exportações desse produto, aumentar o número de empregos e ainda se passar por ecologicamente correto. Porém, os EUA não sinalizam com a derrubada das taxas sobre o etanol brasileiro e prometem investir na abertura de cerca de 70 a 100 novas usinas de álcool com o controle do capital norte-americano, sem falar que o investimento estrangeiro já vem ocorrendo. Estima-se que cerca de 50% do setor estará nas mãos de organizações internacionais em 10 anos. Seja para burguesia internacional ou nacional esses acordos só privilegiam seus interesses e em nada colaboram com o povo. O governo Lula, que nunca demonstrou estar em compasso com os interesse do povo, embora mantenha discurso e medidas populistas, demonstra que trabalha para o capital internacional e para burguesia brasileira. Como todo bom administrador do Estado, cria medidas que colaboram com a reprodução do capital, favorecendo apenas a elite e com migalhas enganando o povo. É certo que irão aumentar o número de empregos, mas a que preço? O cultivo da cana é sazonal. Em uma parte do ano alguns trabalhadores vivem o regime de semi-escravidão no corte da cana (cada vez mais mecanizado e dispensando mais mão de obras), outra parte trabalha nas usinas de beneficiamento em trabalhos temporários sem segurança. Sem falar no grande número de trabalhadores que viajam do nordeste para o centro-sul (onde o corte de cana se dá em época diferente) na esperança de incrementar sua renda e encontram um regime de trabalho duro e que em algumas vezes não dá para pagar as passagens de volta, pois muitos são abandonados pelas empresas no final do corte. No resto do ano são abandonados à própria sorte.

É necessário propagar essa denúncia como forma de conscientizar a população do que está por trás de acordos como esse, travestido de falsas vantagens para o povo e mostrar quem são os verdadeiros beneficiados: a mesma elite que se sucede na história de nossa sociedade, cujo interesse é apenas o lucro, cada vez mais travestido de discurso “politicamente-correto”. A luta contra os usineiros não pode ser uma luta isolada, tem que fazer parte de um projeto maior. Um projeto de uma nova sociedade na qual se leve em conta os interesses da população, baseado na justiça social. A luta que também seria por uma agricultura que andasse em compasso com nossas necessidades, de maneira harmoniosa ao meio ambiente e de forma sustentável, garantindo a reprodução da vida e não do capital.

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

Texto publicado no Jornal Socialismo Libertário, nº 15

A eleição e os trabalhadores alagoanos

O CIRCO ELEITORAL E A REALIDADE DOS TRABALHADORES ALAGOANOS

“Nossa vocação, nosso destino”

O principal produto da economia alagoana, a cana-de-açúcar, foi implantada pelos portugueses no século XVI como estratégia para garantir a ocupação do território e conseqüente colonização do Brasil. A economia era sustentada pela mão-de-obra escrava dos negros trazidos da África e na grande concentração de terras (latifúndios). Passados cinco séculos, a economia de Alagoas, embora mais diversificada e complexa, não está diferente de seu eixo de sustentação: continua sendo baseada na super-exploração do trabalho nas usinas de cana-de-açúcar pelas oligarquias herdeiras do sistema colonial.

O setor sucro-alcooleiro é o responsável mais imediato pela miséria do povo alagoano. Dos anos 90 pra cá a indústria canavieira, sob exigências impostas pela economia mundial, algo conhecido como neoliberalismo, sofre um processo intenso de desregulamentação e flexibilização do trabalho, bem como o emprego de novas tecnologias, modernizando sua produção, mas diminuindo os postos de trabalho. Assistimos também a expropriação das pequenas agriculturas de subsistência, e a formação de um exército de reserva de mão-de-obra fundamental para a manutenção de uma super-exploração pelos “senhores-de-engenho”. Tal processo provoca um intenso êxodo rural, com os trabalhadores alagoanos sendo jogados nas favelas das principais cidades de Alagoas, em especial de sua capital Maceió, sem perspectivas de vida e emprego. Enquanto do lado dos poderosos, vemos maior concentração de renda e terra.

Aliada a tudo isso está a mídia, “imparcial” como sempre foi, noticiando ou veiculando propagandas em defesa dos usineiros “democráticos” (amigos do povo, parceiros do meio ambiente), nas quais os trabalhadores cortam cana sorrindo e a natureza é cada vez mais bela. Não falam que são esses usineiros os principais responsáveis pela intensa degradação ambiental (destruição dos resquícios de mata atlântica, rios mortos pelos dejetos), bem como a própria degradação humana. Afinal, cortar toneladas de canas, com péssimas condições de trabalho e sob intenso calor, poeira, fumaça e fuligem, para ganhar poucos reais não pode ser considerado uma atividade que se faça senão sob uma questão de sobrevivência.

Essa é a “nossa vocação, nosso destino”, assim disseram e assim dizem os nossos inimigos de sempre. Assim, movimentamos “nossa” economia, adubando o solo com o suor dos trabalhadores, quando não com seu próprio sangue. O “doce” da cana vai para as oligarquias alagoanas, para os trabalhadores só lhes restam amargura e sofrimento.

Os aparelhos de Estado e as oligarquias alagoanas

Se estivermos atentos à história da formação político-social alagoana, podemos identificar a consolidação de uma estrutura estatal autoritária e patrimonialista, levada a níveis extremos. E esse fechamento e apropriação da esfera pública para uso particular é notório ao presenciarmos um domínio oligárquico, através do qual poucas famílias dominam o estado alagoano, seja economicamente, seja politicamente, isso sem contar o forte monopólio de mídia que garante a sustentação ideológica indispensável. Em Alagoas, o “Estado Democrático e de Direito” se torna de forma acentuada, mais formal (ilusório) do que real.

É destacável o papel que os poderes de Estado exerceram perante a economia alagoana, intervindo a favor de seus representantes (a burguesia e suas variadas frações), sobretudo para assegurar o predomínio econômico do plantio de cana e produção de açúcar, assim como de suas oligarquias. Para isso, incentivos fiscais nunca faltaram através de vários programas de governo, tanto federal como estadual, definindo regras para exportação e administração dos preços de modo a garantir a produção dentro da margem de lucro dos usineiros, bem como possibilitar a variação na produção para atender as exigências do mercado externo, do qual o setor em Alagoas sempre foi dependente. A centralidade da economia alagoana em torno das usinas é bem exemplar quando vemos que a principal atividade de “extensão” na produção científica da Universidade Federal de Alagoas é o programa de melhoramento genético da cana.

Mas isso nunca bastou. A pistolagem foi uma das formas adquiridas pelos poderosos para se firmar, se configurando até mesmo como uma necessidade da própria formação político-social, co-existindo, dentro de um mesmo ordenamento ideológico, as lutas entre as próprias classes dominantes pelo poder e influência sob determinada região. No entanto, a violência recai de forma brutal sob os trabalhadores quando estes ameaçam minimamente a se levantar contra os desmandos de usineiros ou fazendeiros, protegidos com seus “capitães do mato” ou pela própria polícia do Estado.

Entre a cruz e a espada, ou entre o voto e a ilusão

Para melhorar toda essa situação desesperadora, eis que nos vem o circo eleitoral! Na “festa da democracia”, não existem mais ricos e pobres, patrões e trabalhadores, usineiros e cortadores de cana, todos viram “cidadãos”, alagoanos e brasileiros. Parece interessante, mas não é essa a realidade.

Não seremos nós anarquistas que iremos alimentar qualquer expectativa que seja perante as eleições burguesas. Sim, são eleições burguesas, e dizer isso parece que incomoda. Estamos perante a escolha entre aqueles que irão administrar as contas da burguesia, proteger suas propriedades, expulsar sem-terras, bater em sem-tetos, reprimir estudantes.

Nas eleições deste ano os principais candidatos ao governo de Alagoas são os usineiros João Lyra (o ex-deputado federal mais votado nas ultimas eleições) e Teotônio Vilela (ex-senador). Os mesmos que se mantém no poder econômico são os que se mantêm no poder político, ora com representantes seus, ora representando-se diretamente. Há também os candidatos que se põem como alternativa aos usineiros, como Lenilda do PT e Ricardo Barbosa, candidato da Frente de Esquerda (PSOL, PSTU, PCB e PCR). A primeira é dirigente da CUT, o braço sindical do Governo Lula, e utilizou-se desta posição para fazer auto-propaganda no dia da mulher, nos outdoors de Maceió. Cria de uma política de conciliação de classes que levou o PT a uma guinada sem volta à direita, se utiliza de um discurso curioso. O PT que sempre foi o defensor da “coisa pública”, contra os abusos feitos ao poder público, se coloca como melhor opção, pois Lenilda tem “ligação direta com o presidente Lula”. Isso não é nada menos do que assumir o “clientelismo político”, o “toma lá da cá” (mensalões), onde por trás de “governo para todos”, existem é interesses eleitoreiros e particulares. O PT aprendeu rapidinho...

Já a “Frente de Esquerda”, encabeçada na candidatura de Ricardo Barbosa do PSOL ao governo, se coloca como única alternativa de esquerda pra mudar a política alagoana. Mas que alternativa de esquerda é essa que privilegia a disputa das eleições burguesas ao invés de fortalecer as lutas populares? Seria diferente se o principal candidato fosse de esquerda? E mais, será que é através do aparelho de Estado, via eleições, que podemos reverter todo o sentido histórico de nossa formação sócio-econômica?

Talvez seja mais fácil acreditar que sim, mas nós anarquistas afirmamos que não é esta a saída. O Estado, fruto da divisão social de classes da sociedade, é um instrumento necessariamente conservador, para a manutenção do status quo. Independente de quem esteja no poder legislativo ou executivo, por mais radical que seja o político, não se consegue mudança significativa através do parlamento. E em nosso caso, o mesmo sempre teve estreita relação com a economia canavieira, dando todas as condições para que os empresários do ramo pudessem se enriquecer à custa da exploração dos trabalhadores.

Para nós não existe formula, não existe mágica, nem mesmo o “menos pior”. Estamos seguros que a política de Estado é a política da burguesia. Entendemos que todas as mudanças históricas nas estruturas do sistema foram impostas pelos trabalhadores através de muita luta, sangue, suor e barricadas. Mesmo as conquistas mínimas, são asseguradas e conquistadas na organização e luta de trabalhadores e são para elas que gastamos nossas energias.

Poder Popular: política e protagonismo de classe

A política própria dos trabalhadores é construída e sedimentada a partir de suas próprias mobilizações, de seu próprio espaço de moradia, trabalho ou estudo. É certo que não vivemos em uma situação favorável para a luta dos trabalhadores. A própria organização dos trabalhadores no meio rural alagoano, na luta pela terra, sempre encontrou fortes obstáculos e uma intensa repressão, deixando-os sem muita opção a não ser aceitar as humilhantes condições de trabalho e os baixíssimos salários. No entanto, não nos resta outra saída.

A despeito do que nos jogam com bastante intensidade pela grande mídia, o que já seria motivo para desconfiança, não entendemos que “o Brasil está em nossas mãos”, ou mesmo Alagoas, através do voto nessas eleições. Não acreditamos que estamos dando um rumo de justiça e liberdade cedendo o poder de decidir sobre nossas vidas a terceiros, a políticos profissionais que vivem outra realidade, que mesmo que venha a ser o mais operário de todos, irá passar a olhar de “cima para baixo” as necessidades da população e a negociar seus direitos para se sustentar no topo.

O Poder Popular se constrói na luta direta pela terra, nas ocupações de sem tetos, na luta por transporte de qualidade, pela saúde e educação, feitas a partir do povo, pelo povo pobre e trabalhador. Foi assim no Quilombo dos Palmares e é assim a cada luta contra a exploração e opressão que estamos submetidos diariamente, que podemos avançar em nossas conquistas e deter o controle sobre nossas vidas.

Chamamos todos os trabalhadores a não caírem na armadilha eleitoral! Gritemos fora aos usineiros e às oligarquias alagoanas, bem como aos seus representantes e à esquerda reformista. FORA TODA CLASSE POLÍTICA! Só temos dois caminhos: ou votar com os de cima, ou lutar com os de baixo. Chamamos o voto nulo e, principalmente, para nos levantarmos com organização e luta, contra os desmandos da classe dominante e seus projetos.

Política quem faz é o povo organizado! Protagonismo e luta popular!

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

Texto publicado no Jornal Socialismo Libertário, Nª 14

Universidade para todos?

Universidade para todos?

A universidade sempre foi formada no imaginário da sociedade, sobretudo nas camadas mais baixas, enquanto uma possibilidade de ascensão social. Atualmente assistimos um processo em curso de intensa expansão do ensino superior. Parece ser a chance de milhões de brasileiros “serem alguém na vida”, como se costuma dizer. Com um verniz de “democrático e popular”, o Governo Lula vem se apresentando enquanto tal e cada política posta parece carregar a confirmação deste rótulo.

No entanto, fica apenas nas aparências ou no mero discurso. No campo da educação várias medidas vem sendo implementadas. São programas com a perspectiva de garantir um apoio ideológico das camadas mais baixas da população a ações na verdade orientadas pelo projeto neoliberal. Isso tem sido uma arma poderosa, mesmo que o número de pessoas atingidas seja ínfimo.

O ProUni (Programa Universidade Para Todos) é um dos “carros-chefes” do Governo Lula. Uma propaganda massiva e comovente foi amplamente realizada. Como se sabe, o ProUni visa preencher as chamadas “vagas ociosas” do setor privado da educação, por conta da inadimplência, com estudantes de baixa renda tendo bolsas (integrais ou parciais). Para isso o Governo concede a isenção de impostos aos “tubarões do ensino”. É a destinação de verba pública para o setor privado.

Este programa está de acordo com a meta traçada pelo PNE (Plano Nacional de Educação) de 2001, a qual estabelece que até o final desta década cerca de 30% de jovens situados na faixa de 18 a 24 anos, estejam inseridos na educação superior, sem para que isso amplie os recursos públicos para as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Junto a isso, vemos o incentivo e impressionante massificação da “Educação a Distância”, na qual se inclui o tenebroso projeto de Universidade Aberta do Brasil que segundo o ministro da educação, Fernando Haddad, e em sintonia com o próprio ProUni, “vai revolucionar a educação brasileira”. Uma educação “atropelada”, rompendo com os pilares de “ensino, pesquisa e extensão”, que, ao menos a alguns anos atrás, eram requisitos para a universidade ser, universidade.

Interessante notar que junto com uma expansão do ensino superior, de qualidade extremamente duvidosa, de conhecimento cada vez mais tecnicista e orientado para as demandas de mercado que se tem, distribuindo diplomas a toque de caixa, vemos a Assistência Estudantil ser levada com total descaso nas IFES. Não é pouco contraditório ver toda a “vontade” do governo em ampliar, democratizar, o acesso à educação superior, e no interior das federais públicas, por exemplo, não garantir condições mínimas para a manutenção dos estudantes nela.

Na Universidade Federal de Alagoas foram feitos embates pelo Movimento Estudantil nos últimos anos contra políticas cada vez mais agressivas ao caráter público, em seu sentido gratuito. Uma universidade que concede “medalha de honra ao mérito” para Fernando Collor, para usineiros do estado como João Lyra, entre outras personalidades políticas, e que, em seu interior, vem intensificando o incentivo a empresas juniores e ampliando cursos de especialização pagos. A cobrança de taxas acadêmicas presente nesta Universidade também tem valor simbólico perante o processo de privatização interna das IFES e é justificada para cobrir parte do orçamento destinado a Assistência Estudantil, como manutenção de Restaurante Universitário, Residência e etc, pois a mesma não tem rubrica própria no orçamento federal destinado às universidades.

Vemos agora a UFAL ser ampliada para o interior do estado, com a inauguração de um campus em Arapiraca e, em breve, teremos mais em outras cidades. O caráter que toma esta ampliação e sua orientação não foi debatido como deveria pelo conjunto do ME. E não é um debate fácil de ser travado, assim como todas essas políticas “sedutoras” postas para o ensino superior. Ora, como alguém poderia ser contra a criação de campus no interior do estado? Como alguém poderia se levantar contra a destinação de vagas, seja lá onde for e como for, para estudantes de baixa renda?

A ofensiva neoliberal no ensino superior vem cobrindo-se de “popular”, ao mesmo tempo em que põe em cheque a gratuidade e a qualidade. Embora o ME venha passando por um momento de incertezas, de reorganização, a luta não pode esperar. É preciso lutar por mais verbas públicas na educação pública, contra os cursos pagos e pela Assistência Estudantil, tendo como orientação fazer da universidade uma trincheira na luta de classes.

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares – CAZP

Texto publicado no Jornal Socialismo Libertário, Nº 13

[CAZP] Teoria e Ideologia

Material de debate teórico-político

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

Alagoas, Janeiro 2007

Tema: Teoria e Ideologia

Entre a Teoria e a Ideologia: onde fica o anarquismo?

A discussão e discernimento entre teoria e ideologia não pode ser encarado como qualquer coisa, algo de menor importância. Precisar o lugar de cada uma, onde elas surgem e como elas incidem é possibilitar uma prática política mais condizente com a luta dos trabalhadores.

Entre renomados nomes do anarquismo, a discussão de teoria e ideologia não aparece tão clara, até mesmo pela pouca precisão conceitual o qual muitas vezes trabalhavam. Nisso resulta, por exemplo, numa confusão que tende ora a identificar o anarquismo enquanto uma teoria, ora como uma ideologia. Para começar a resolver essa questão, entendemos que pôr o anarquismo enquanto uma corrente política distinta, mas constituída no seio do movimento socialista, é o ponto de partida.

Na história do anarquismo encontramos Kropotkin a quem insistiu em dar ao anarquismo o status de ciência, estabelecendo um desastroso diálogo com o positivismo na medida em que tomava as ciências naturais e seus métodos como os parâmetros para entender a sociedade humana, afirmando, inclusive, uma negativa a dialética. Em contraposição, Malatesta afirmava que o anarquismo é uma “aspiração humana, que não se funda sobre nenhuma necessidade natural, verdadeira ou suposta, e que poderá se realizar segundo a vontade humana”, o que até poderíamos concordar (ainda que com ressalvas) se ele não acrescentasse dizendo que: “Pode-se ser anarquista com qualquer sistema filosófico preferido” (Anarquismo e Ciência). O que podemos dizer quanto a estas duas perspectivas?

Para começar a elucidar esta questão faz necessário identificar, a luz da história, o surgimento das idéias e práticas anarquistas. Nesse sentido, só podemos identificar o anarquismo surgido no próprio seio da luta de classes. A experiência revolucionária na França em 1793 e a chamada “primavera dos povos” alastrada em praticamente toda a Europa em 1848 são dois marcos para o surgimento em contornos mais claros e diferenciados, no seio da própria luta dos trabalhadores, daquilo que seria identificado enquanto anarquismo. A experiência de uma revolução política (França em 1793) em que ascende uma nova classe dominante com a de um movimento de caráter mais social, mas de orientação predominantemente estatista (1848), vai fazer com que Bakunin conclua “que a liberdade sem o socialismo é o privilégio, a injustiça; e que o socialismo sem liberdade é a escravidão e a brutalidade”. A Plataforma Organizacional do Grupo Dielo Trouda nos diz que

[...] o anarquismo não se origina de reflexões abstratas nem de um intelectual ou filósofo, mas sim da luta direta de trabalhadores contra o capitalismo, das carências e necessidades dos trabalhadores, das suas aspirações à liberdade e igualdade, aspirações que se tornam particularmente vivas no melhor período heróico da vida e luta das massas trabalhadoras. (MAKHNO, 2001, p. 40)

Portanto, entendemos que o anarquismo surge conjugado em análises e experiências da luta revolucionária, extraindo daí elementos impulsionadores de sua ação. Assim, podemos dizer que o “anti-estatismo”, tomado enquanto parte integrante de uma ideologia anarquista, se assim poderíamos dizer, que em determinada medida orienta e motiva uma prática política identificada com o anarquismo, não surgiu da cabeça de um gênio, muito menos do nada. Ele é circunscrito em um processo de formulação teórica, a qual é realizada junto a uma determinada realidade e a uma incidência nela (luta). No entanto, não existe teoria inocente, e nela também encontramos elementos ideológicos que nos fazem tomar parte sob este ou aquele ponto de vista, ou enfatizar este ou aquele elemento.

No documento Huerta Grande (A importância da Teoria) da Federação Anarquista Uruguai, teoria e ideologia são assim definidos:

* Teoria – conhecimento de determinada realidade, objeto, com formação de conceitos. Estes servem de instrumento para apreensão e explicação de uma dada realidade, mas entendendo a primazia do ser sobre o pensamento, ou seja, da realidade perante o conhecimento que se tem dela.

* Ideologia – trata-se de um elemento não cientifico, servindo como um estímulo à ação. Ainda que não mecanicamente, ela está vinculada pelas condições objetivas.

Concluiu-se assim que: “A teoria precisa, circunstancializa as condicionantes da ação política: a ideologia a motiva e impulsiona, configurando-a em suas metas ‘ideais’ e seu estilo” (Huerta Grande).

Pois bem, podemos identificar vários elementos que surgem no anarquismo enquanto princípios. No entanto, para que estes possam se constituir enquanto tais é necessário fazer justamente o que foi feito por Bakunin: aliar a experiência histórica com a análise cientifica. Mas ainda assim, é preciso livrar o anarquismo de um grande mal que lhe ronda: o pouco cuidado com o acabamento teórico, a precisão conceitual. Nos diz Makhno, à luz da experiência histórica da revolução russa, que

Embora o ideal anarquista seja potente, positivo e incontestável, acusa ainda algumas lacunas, entra ainda muito pelos lugares comuns abstratos e vagos e as divagações por domínios que não têm nada a ver com o movimento social dos trabalhadores. É daí que provém a possibilidade de interpretar erradamente as aspirações do anarquismo e o seu programa prático. (MAKHNO, 2001; p. 25)

Nesse sentido, ao evocar aos quatro ventos princípios ideológicos como “autogestão”, “federalismo” ou “ação direta” sem estes se articularem como fruto de uma reflexão teórica quanto a totalidade social, teremos como resultado somente palavras vazias, ou, mesmo encontrando algum eco, não conduzirão a luta sob bases sólidas, nem mesmo poderão ser tomadas como ponto de partida. Não é à toa que o anarquismo muitas vezes surja como uma “doutrina moralista”, pois, ao não solidificar suas concepções, ao não aprofundar e atualizar seu programa e postulados teóricos na medida da exigência das experiências históricas, a orientação para a militância anarquista acaba procedendo-se de valores éticos, de atitudes, conduta, que irão lhe balizar e orientar, por exemplo, a definição de campos de ação. Assim procedendo, não faremos algo muito diferente daqueles que jogaram o anarquismo a um “estilo de vida” ou uma “filosofia de vida”.

O que deve orientar em todos os sentidos a militância anarquista e sua inserção na luta dos trabalhadores são as necessidades e possibilidades históricas da classe trabalhadora, identificadas pelo seu arsenal teórico, e não “preferências pessoais” ou questões de “conduta”, valorativas (ideológicas). Não que estas últimas não possam ser representativas quanto ao alcance e possibilidade de luta em um espaço de organização dos trabalhadores. No entanto, não podem ser tomadas como o cerne da questão.

De fato, problemas de teoria existem e na medida em que o anarquismo se ocupou pouco em resolvê-los seriamente eles se tornaram muitos. Mas os problemas de teoria sempre existirão por mais que se possa lançar-se com ardor no trabalho teórico. Todavia, ocupar-se com este trabalho é imprescindível. Recorrendo mais uma vez a Makhno, ele alerta que

As massas exigem uma resposta clara e precisa dos anarquistas a respeito destas e de muitas outras questões. E, a partir do momento em que os anarquistas declaram uma concepção de revolução e da estrutura da sociedade, eles são obrigados a dar uma resposta clara à todas estas questões, relacionar a solução destes problemas à concepção geral de comunismo libertário, e devotar todas as suas forças à realização destes. (MAKHNO, 2001; p. 46)

São notórias as diversas lacunas teóricas presentes no anarquismo, e que pouco foram aqueles que se ocuparam em aprofundá-las e contextualizá-las. De Bakunin na Guerra Franco-Prussiana ao Imperialismo Norte-Americano, várias foram as experiências de luta, as mudanças no mundo do trabalho e pouco o anarquismo disse quanto a elas. Os clássicos jamais deixarão de ser referência, suas bases e essência permanecem, mas evidentemente não poderiam suprir as questões que não se apresentaram, não existiam, na sua época. Nesse interino, várias formulações e explicações foram feitas e é preciso se apropriar delas. Isso não é enterrar o anarquismo, mas compreender uma latente debilidade teórica, que não se trata de algo intrínseco, mas fruto de vários desdobramentos históricos (inclusive de luta contra o anarquismo). Reconhecer isso serve justamente para possibilitar ao anarquismo sua renovação (não revisão), dar ao mesmo fermento para poder, sendo o caso, construir análises próprias e diferenciadas, suprimindo lacunas ou, ao menos, lhe dando mais vigor e consistência. Enfim, é por o anarquismo no lugar que lhe cabe: enquanto alternativa concreta para a luta dos trabalhadores.

A Organização Política e o Trabalho Teórico

Uma organização política que se pretende revolucionária, não pode tomar uma postura vacilante frente aos desafios teóricos, caso contrário sua prática política estará comprometida e sua ação tornar-se-á estéril. Terá que ser capaz de dar respostas rápidas e precisas em diferentes situações, conjunturas e formações sociais. Saber identificar os pontos estratégicos preponderantes no sistema mundial de exploração, com as particularidades que este assume na realidade local (em nosso caso, em um país de terceiro mundo e com toda uma formação histórico-social diferenciada) é indispensável. Compreender as possibilidades de desenvolvimento da luta de classes numa perspectiva revolucionária, sua capacidade de ampliação e sustentação, também não são menos importantes.

Sendo o trabalho teórico formulado na perspectiva do Trabalho, da apreensão mais aproximada possível da realidade, ele não pode, como muitas vezes é recorrente na esquerda, servir para ratificar e justificar a prática da Organização ou Partido. É daí que surgem as concepções messiânicas, muito presente nas organizações de tipo leninistas, de um único partido, auto-suficiente, auto-intitulado de legitimo representante da classe trabalhadora.

Na prática, o que ocorre nessas situações, e o stalinismo seria o seu grau mais elevado, é o estabelecimento de uma relação mecânica (por mais que se apresente enquanto “dialética”) entre teoria e prática política. Ou seja, o puro pragmatismo da luta passa a orientar o trabalho teórico, tornando-se este uma ferramenta luxuosa para justificar a rasteira prática política adotada. Com isso, a Organização/Partido pode até mesmo crescer e ficar mais forte no movimento, no entanto, o resultado é uma grosseira falsificação da realidade (ideologização) e uma trágica conseqüência para a luta dos trabalhadores, muitas vezes expostas nos momentos mais decisivos, de vida e de morte, da luta de classes.

A teoria não é uma construção feita à margem da luta de classes, pois é somente imerso nas lutas vivas e concretas dos trabalhadores que se pode ter a possibilidade de desenvolver a atividade teórica de maneira a expressar as perspectivas que se abrem no seio da própria luta de classes. Então, segundo Bakunin, “se ninguém tem e pode ter a pretensão de outorgar a verdade, devemos procurá-la. Quem a procura? Todo o mundo, e principalmente o proletariado que tem sede e necessidade dela mais do que todos os outros” (2001, p. 75). Isso implica que, ao contrário do que se costumou ver no movimento dos trabalhadores, formulações que não buscam a constatação dos fatos tal como eles são, e não como desejamos, seja porque poderia ser vantajoso para o fortalecimento da nossa Organização, seja por outro motivo qualquer, não podem levar o movimento dos trabalhadores, à luta pela emancipação humana, senão à total deturpação de suas necessidades e possibilidades históricas.

Pode-se incidir sobre a realidade e desempenhar uma prática política junto aos trabalhadores sem um maior trabalho teórico, estando baseado em uma visão de mundo mais ou menos homogêneo, em aspectos mais ideológicos, e isso, muitas vezes, é o ponto de partida inevitável. Mas para de fato empreender uma luta conseqüente com a perspectiva do Trabalho e não se perder nos fenômenos e nas aparências, é necessário ter elementos que permitam não simplesmente tatear a realidade e deduzir conclusões, mas sim, poder apontar e precisar as circunstâncias e possibilidades que se formam e se abrem em cada conjuntura e momento histórico. Este trabalho não tem fim, faz parte de um processo histórico, pois, tendo o ser primazia quanto ao pensamento, a formulação teórica sempre irá esbarrar em seus limites históricos, ou não seria conhecimento cientifico, e sim místico, teológico ou coisa semelhante. Para incidir sobre a realidade é preciso conhecê-la.

“[...] à ação revolucionária secretamente organizada dos indivíduos e dos círculos, tomando por base que estes últimos não caíram do céu, mas fazem parte da mesma realidade, eles são modelados por ela e, à sua maneira, ainda que sob uma forma reduzida, exprimem esta realidade, sob a condição, evidentemente, de que círculos e indivíduos estudem atentamente, escrupulosamente e sem se causar a mínima ilusão, a realidade sobre a qual eles querem agir.” (Bakunin, Carta a Petr Lavrov; 1870)

Ter a leitura correta da realidade (ou mais aproximada) nos permite não só avançar teoricamente, mas também politicamente, mesmo que isso não represente em um primeiro momento influência de maior relevância nas massas trabalhadoras. Pois ter uma leitura correta, não significa atrair para si o maior número de pessoas. Mas para uma Organização Política é, sobretudo, não andar em círculos e ter possibilidade de despender energias e forças da forma mais concreta e positiva para a luta dos trabalhadores em sua perspectiva revolucionária.

O método como base para a construção teórica

Como os anarquistas lidaram com os problemas de teoria? Leandro Konder, em “A derrota da dialética” tece criticas corretas aos anarquistas brasileiros no momento histórico tratado (inicio do séc. XX), sendo representativo a um processo que se consumava no anarquismo e que tomará as conseqüências mais trágicas na Espanha em 1936.

O pior dessa disponibilidade eclética para acolher e justapor pensamentos que se moviam em linhas diferentes [as várias correntes anarquistas] é que, se por um lado ela era expressão de certa “abertura espiritual” antidogmática, por outro ela decorria de uma falta de rigor que impedia o reconhecimento dos problemas concretos a serem resolvidos pela teoria: dava-os por resolvidos antes de sequer identificá-los. (KONDER, 1988; p. 106)

O autor completa que “da combinação acrítica de idéias tidas como de “esquerda” ela passa, naturalmente, à combinação de idéias de “esquerda” com idéias de “direita”, cedendo a ilusão de subordinar com facilidade estas àquelas.” (idem). Não se trata de assumir o “bakuninismo”, “malatestianismo” ou algo do tipo, o que também não é fazer pouco caso quanto às diferenças de concepção que toma o anarquismo ao longo de sua história. O fundamental é o compromisso que devemos assumir com o conhecimento da realidade, o rigor critico, que desenvolve, refuta, absorve e supera elementos do anarquismo e de sua prática política construída ao longo de sua história, para viabilizar o êxito na luta incessante pela emancipação humana.

Como lidar com todas essas questões? O primeiro passo, no nosso entender, é identificar um erro que historicamente vem sendo feito, em maior ou menor grau, que é a pluralidade metodológica que acaba esterilizando o anarquismo, e sendo assim, não dar para conciliar Bakunin com Kropotkin sem destruir a própria possibilidade de se construir firmes alicerces teóricos. Se os problemas teóricos existem e sempre existirão, eles só poderão ser superados pelo método de apreensão da realidade, pois ela representa a base e o meio de construção teórica. É esta ferramenta que permite superar equívocos teóricos e na prática política anarquista, estando em compasso com as próprias experiências históricas.

Entender a importância do método e de seus elementos centrais é compreender a existência de uma universalidade e uma totalidade social construída por um fio condutor. Este, por sua vez, sob nossa ótica materialista é o Trabalho, pois representa o ato material fundante do ser social, “o ato pelo qual o homem, tornando-se criador, forma seu mundo, as bases e as condições de sua existência humana, e conquista, ao mesmo tempo, sua liberdade e sua humanidade” (Bakunin, 1988, p. 42). Não é o caso de cair num esquema economicista, porém também não se pode cair nas formulações pós-modernas que “afirmam”, por exemplo, que o poder está em todo lugar, ao mesmo tempo em que não está em lugar algum.

Bibliografia

BAKUNIN, Mikhail. Bakunin por Bakunin (cartas). Coletivo Sabotagem.

_________, Mikhail. Escritos contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001.

_________, Mikhail. Federalismo, Socialismo e Antiteologismo. São Paulo: Cortez, 1988.

FAU, Federação Anarquista Uruguaia. A importância da Teoria - Huerta Grande (texto)

KONDER, Leandro. A Derrota da Dialética: a recepção das idéias de Marx no Brasil até os anos trinta. Rio de Janeiro; Campus, 1988.

MAKHNO, Nestor. Anarquia e Organização. São Paulo. Luta Libertária, 2001

MALATESTA, Errico. Anarquismo e Ciência (texto)

PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistemas das contradições econômicas ou Filosofia da Miséria. Tomo I. São Paulo: Ícone, 2003.

[CAZP] Materialismo e Idealismo

Material de debate teórico-político

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

Alagoas, Janeiro 2007

Tema: Materialismo x Idealismo

Considerações iniciais

É conhecida a atribuição feita ao anarquismo de que este seria idealista. Mesmo que se colocasse “subjetivamente” favorável ao materialismo, suas práticas concretas e conclusões teóricas advinham de uma perspectiva idealista, a qual, normalmente, atribui à vontade humana o papel determinante na transformação do mundo. Tal é a perspectiva que normalmente enquadram o anarquismo.

De fato, podemos identificar aspectos idealistas em certos pensadores do anarquismo, ou mesmo transformando-se na própria base de suas formulações teóricas. Aliado a isso temos interpretações confusas e a-históricas do anarquismo, proferidas muitas vezes pelos próprios anarquistas, revestido de um evolucionismo com doses de naturalismo, que parecem confirmar esta suposta verdade. Aqui podemos citar Kropotkin e o historiador inglês do anarquismo George Woodcock, que chegam a ir até à filosofia grega e da China Antiga ou mesmo nas seitas cristãs heréticas da Idade Média para buscar as raízes do pensamento anarquista. Nada mais jocoso.

Ora, o próprio anarquismo não é outra coisa senão um produto concreto, histórico, que tem origem sob determinadas condições materiais. O anarquismo se circunscreve no momento de ascensão e consolidação da burguesia enquanto classe dominante, com suas revoluções burguesas, que darão novas formas de produção e reprodução da vida social, novas bases materiais e também filosóficas.

Se a base material, concreta, de formação do pensamento e prática política anarquista foi a própria sociedade burguesa em formação, com o predomínio da relação de trabalho assalariado, sob que bases filosóficas o anarquismo vai firmar seu espaço? Responder a essa pergunta não é tarefa fácil. Tomamos, para inicio da discussão, aquele quem primeiro deu uma conceituação positiva ao anarquismo, estamos falando, pois, de Joseph Proudhon. Este francês foi um dos mais influentes socialistas de sua época. Suas primeiras obras, “O que é a propriedade?”(1840) e “Filosofia da Miséria”(1846) têm como alicerce a crítica à economia política inglesa e ao socialismo utópico francês, que é basicamente o ponto de partida para o socialismo, não diríamos “cientifico”, mas fundado em uma análise concreta do capitalismo na perspectiva de sua superação.

Assim vemos posto, talvez pela primeira vez de forma criteriosa, a necessidade e possibilidade de superação do regime de propriedade privada e o fim do antagonismo entre as classes, o que significa o fim delas. Mas para isso, foram necessárias determinadas condições para possibilitar a apreensão da questão. Afinal, a luta de classes já existia antes que alguém a tomasse como objeto de estudo e a transformasse em conceito.

Proudhon vai colocar a ligação entre economia e filosofia. Não se pode entender a economia sem que não a trate também enquanto filosofia, e essa observação é muito importante, pois trata de dizer que a organização econômica é também resultado de concepções em termos de filosofia e não algo simplesmente dado, desconectado de uma visão e compreensão de mundo.

[...] a ciência econômica é para mim a forma objetiva e a realização da metafísica; é a metafísica em ação, a metafísica projetada sobre o plano fugaz da duração e todo aquele que se ocupa das leis do trabalho e da troca é verdadeiramente e especialmente metafísico[1]. (PROUDHON, 2003, p85-6)

Nesse sentido Proudhon vai se ocupar na investigação das considerações da economia política e critica os socialistas utópicos por estes abdicarem de entendê-la e superá-la, acabando por tentar “reconstruir a sociedade sob bases inexistentes”. Em uma crítica feita à economia política por Proudhon, este coloca que o vício daquela é “afirmar como estado definitivo uma condição transitória”. Aqui, a despeito até mesmo das criticas feitas por Bakunin que afirmava que Proudhon ia do direito à economia, e não da economia ao direito, Proudhon vai concluir que se a economia política é falsa, a jurisprudência enquanto uma ciência do direito e do costume é ainda mais falsa, pois se pauta pelo “princípio da apropriação individual e da soberania absoluta dos indivíduos”. Consiste que a economia política, ou seja, “o código ou rotina imemorial da propriedade”, junto com o Direito representam a “prática organizada do roubo e da miséria”.

Estas observações de Proudhon, por mais que ainda percorrendo o pensamento desse revolucionário ainda se possam apontar equívocos ao mesmo, como o próprio Bakunin fez ao dizer que o francês, por mais que tenha se esforçado “morreu metafísico” (idealista), são importantes para a construção de uma critica materialista da sociedade capitalista. Mais que isso, demonstram que o anarquismo só pôde ser anarquismo, sob determinadas condições materiais. E justamente sob estas condições materiais, atuando sob elas e apropriando-se daquilo que se formulou em idéias até então, é que o anarquismo pôde se desenvolver enquanto uma ferramenta não só ideológica, mas teórico-política no seio do movimento internacional dos trabalhadores.

Causalidade e Materialismo

Ter uma compreensão clara dos fatores que incidem no desenvolvimento da sociedade humana, sob que bases e condições esta se constrói, é poder pensar corretamente a realidade a qual ousamos transformar. Para isto é importante tomar a discussão entre realidade e pensamento, entre objeto e sujeito, ou simplesmente entre idéia e matéria. Iniciamos com alguns questionamentos. Onde o homem se situa no mundo e como se estabelece sua relação com o mesmo? Estamos falando de uma relação fundada no mero acaso, no mero reflexo de situações concretas ou de uma relação de deliberação? Ou não é tão simples e puro assim? E existe uma unidade no universo? Afirma Bakunin que

Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do Universo, todas as coisas existentes no mundo, qualquer que seja sua natureza, sob os aspectos da qualidade como quantidade, grandes, médias ou infinitamente pequenas, próximas ou imensamente distantes, exercem, sem o querer e sem mesmo poder pensar nisso, umas sobre as outras e cada uma sobre todas, seja imediatamente, seja por transição, uma ação e uma reação perpétuas que, combinando-se num único movimento, constituem o que chamamos de solidariedade, vida e causalidade universais. (BAKUNIN, 1988; p. 57)

No entanto, tal causalidade universal não é uma causa absoluta e primeira. Ela é mais uma “resultante produzida e reproduzida sempre pela ação simultânea de uma infinidade de causas particulares” onde “cada ponto atuando sobre o todo (aqui o universo é produzido), e o todo atuando sobre cada parte (aqui o universo é produtor ou criador)” (1977, p. 186). Trata-se da unidade real do universo, que não sendo nem pré-determinada, nem pré-concebida, é a eterna transformação, sem começo, limite ou fim: é a negação de Deus, pois com um “legislador” impondo arbitrariamente suas leis não poderia existir tal unidade. Portanto, é este movimento, o qual Bakunin denomina de causalidade universal, quem forma todos os mundos, desde o mineral até o animal (incluído o homem), a própria natureza. Estando o homem inserido nesta cadeia de relações e transformações mútuas, implica que ele está submetido à mesma, não podendo mais do que agir de acordo com os limites impostos pela natureza a qual ele faz parte. O homem atua e age em virtude das leis da própria natureza, produto e produtora da causalidade universal, portanto, não pode detê-las nem mudá-las por ação e vontade livre e espontânea. Sendo assim, o homem não cria a matéria, ele antes de tudo parte dela. Ou seja, “o homem com sua inteligência magnífica, suas idéias sublimes e suas aspirações infinitas, nada mais é, como tudo o que existe neste mundo, que um produto da vil matéria.” (2000; p. 13)

Sob este aspecto, a consciência humana é determinada pela condição material, a qual ela surge como expressão ideal (não necessariamente verdadeira) de uma dada realidade material. E é por isso que não existe vontade livre, pois a própria vontade humana está determinada pelas condições materiais de existência que é precisamente a base para qualquer entendimento quanto às necessidades e possibilidades históricas de desenvolvimento da humanidade.

Materialismo e Subjetividade

O ponto de partida da vida animal é a luta pela própria vida. Antes de tudo, os seres vivos de todas as espécies necessitam estabelecer as condições mínimas para a garantia de sua existência, não somente da vida individual, mas de sua própria espécie. São sob tais condições que se dão todos os desenvolvimentos e a satisfação das necessidades tanto enquanto individuo quanto da espécie, mesmo que este desenvolvimento e necessidades se limitem aos mais elementares, os vitais, para nascer, crescer e até morrer. No entanto, este desenvolvimento e a satisfação de suas necessidades, apresentam-se de forma diferente nas variadas espécies e entre o homem e os demais animais de forma totalmente distinta.

Nas sociedades de animais todos os indivíduos fazem exactamente as mesmas coisas: um mesmo génio os dirige, uma mesma vontade os anima. Uma sociedade de animais é um conjunto de átomos redondos, curvos, cúbicos ou triangulares, mas sempre perfeitamente idênticos; a sua personalidade é unânime, dir-se-ia que um só eu os governa a todos. Os trabalhos que os animais o executam, quer individualmente, quer em sociedade, reproduzem o seu carácter traço por traço: assim como o enxame de abelhas se compõe de unidades da mesma natureza e igual valor, assim o favo de mel é formado pela unidade alvéolo, constante e invareàvelmente repetido.

Mas a inteligência do homem, destinada ao mesmo tempo para o destino social e para as necessidades da pessoa é de uma factura completamente diferente e é o que torna, por uma consequência fácil de conceber, a vontade humana prodigiosamente divergente. Na abelha a vontade é constante e uniforme, porque o instinto que a guia é inflexível e é esse o único instinto que faz a vida, a felicidade e todo o ser do animal; no homem, o talento varia, a razão é indecisa, portanto, a vontade múltipla e vaga: procura a sociedade mas foge das dificuldades da monotonia: é imitador mas amoroso das suas ideias e doido pelas suas obras. (PROUDHON, 1997; p.218-19)

Toda essa citação de Proudhon nos parece bastante oportuna. O pensador francês estabelece no universo humano, uma esfera subjetiva, a qual se trata de algo essencialmente humano. É precisamente nesta subjetividade, na possibilidade de, através da abstração e da construção de noções, formular idéias, que podemos delimitar a separação entre o mundo animal e o mundo dos homens. O mundo ideal consiste na “última e mais alta expressão de sua vida animal” (Bakunin, 1977; p. 199). Toda esta potência de abstração desenvolvida ao longo dos séculos, permite ao homem “conceber a idéia de totalidade dos seres, do universo e do infinito absoluto” (idem, p. 202). Ora, tal afirmação não nos remeteria a uma concepção idealista? Negativo. Esta diferenciação, a possibilidade intrínseca ao ser humano de adquirir conhecimento não para o individuo, mas para a humanidade em geral por fixar idéias, é que lhe dá a possibilidade de romper com sua animalidade, para assim construir um mundo histórico. Mas enquanto isto não se realiza em termos concretos permanece mera formalidade, não se constituindo em uma realidade.

O homem cria este mundo histórico pela força de uma atividade que encontrareis em todos os seres vivos, que constitui o próprio fundamento de qualquer vida orgânica e que tende a assimilar e a transformar o mundo exterior segundo as necessidades de cada um, atividade, consequentemente, instintiva e fatal, anterior a qualquer pensamento, mas que, iluminada pela razão do homem e determinada por sua vontade refletida, transforma-se nele e para ele em trabalho inteligente e livre. (BAKUNIN, 1988; p. 70)

A relação entre uma abelha e o seu meio, não é de transformação. Ela pode até se adaptar a uma realidade mais ou menos diferente da normalmente vivida pela sua espécie, desde que garanta sua reprodução, mas isso não representará progresso na espécie, pois não cria história. A história da abelha é, substancialmente, a mesma em qualquer tempo e espaço. A história de uma abelha é a história de todas as abelhas. O homem, ao contrário, é transformado em ser social e nesta qualidade, transformador de seu próprio meio, mais ou menos de acordo com suas necessidades e dentro das possibilidades históricas, concretas.

O que temos é que, se podemos dizer que o homem se diferencia dos demais animais pela sua capacidade de abstração, sua capacidade de pensar (inseparável da de fixar idéias), estas por sua vez, só se realizam pelo ato do trabalho. Pois, é somente com o ato material do trabalho que o homem irá transformar a natureza, o meio em que vive, e ao transformar este meio transformará a si mesmo na medida em que faz parte deste próprio meio. O Trabalho é, portanto, a mediação necessária estabelecida entre o homem e a natureza, uma ação concreta que constrói as bases e condições da existência da humanidade, pois não somos o que pensamos e sim o que fazemos, sendo, portanto, através desta ação concreta perante a natureza que o homem pode conquistar as condições para a plena satisfação de suas potencialidades. E é precisamente por isso que o Trabalho aparece como a categoria central e o fio condutor para apreensão e análise em nossa sociedade.

Mas como vimos, se o trabalho é o ato com o qual o homem transforma seu meio, esta transformação é impulsionada, num primeiro e primitivo momento, por necessidades básicas, vitais, da vida animal. Mas com a própria ampliação de suas necessidades e complexificação do mundo social, estas necessidades, este impulso, tende cada vez mais a ser dirigido por idéias. Mas como têm sido produzidas as idéias nos homens?

Pela constatação e por uma espécie de consagração dos fatos realizados, porque nos desenvolvimentos práticos da humanidade, tanto como na ciência propriamente dita, os fatos realizados precedem sempre as idéias, o que prova mais uma vez que o conteúdo do pensamento humano, seu fundo real, não é uma criação espontânea do espírito, e sim que é dado sempre pela experiência reflexiva das coisas reais. (BAKUNIN; 1977, p. 202)

Ou seja, a idéia em si não cria nada, antes de tudo, ela é uma resposta a uma dada situação. Mas esta resposta não pode ser entendida enquanto algo mecânico, meramente como reflexo material. Ela apresenta-se para os seres humanos enquanto uma resposta idealizada – mas não necessariamente realizada –, pois ordena e subordina-se às suas próprias necessidades, tomando escolhas de acordo com as opções abertas e abstraídas. Mas mesmo estas escolhas, esta idealização, não é algo simplesmente pessoal ou descolado da própria sociedade, da própria realidade material. Podemos diferenciar perfeitamente uma cadeira de uma mesa, mas esta e aquela podem ser idealizadas de diferentes formas (e assim foram ao longo da história) sem que deixem de ser uma cadeira ou uma mesa.

O que temos, portanto, é que os homens possuem a possibilidade de construir sua história. Assumirem uma posição não de simples objetos, mas de sujeitos ativos, devido a este aspecto subjetivo que como já dissemos, é algo essencialmente humano. Mas a história da humanidade não é a de seus pensamentos (idéias), o qual é limitado e determinado pela condição material, onde se conclui, portanto, que “o pensamento decorre, ao contrário, da vida, e que, para modificar o pensamento, é preciso transformar a vida” (Bakunin, 2003).

Isto não é desconsiderar a possibilidade das idéias incidirem sobre a própria vida, afinal, aquela também faz parte desta, mas entender que não mudamos a vida por um simples ato de vontade, até mesmo porque, esta própria vontade, não é algo que nasce no homem, e sim, é determinada por sua relação com as coisas e os demais homens. É preciso que exista uma base material que possibilite tal transformação.

A importância do método materialista para superação do capitalismo

O povo não é doutrinário nem filósofo. Não tem tempo nem hábito de se interessar por diversas questões ao mesmo tempo. Ao se apaixonar por uma, esquece das outras. Daí decorre, para nós, a obrigação de apresentar-lhes a questão essencial da qual, mais do que qualquer outra, depende de sua libertação. Ora, esta questão é indicada por sua própria situação e por toda sua existência; é a questão econômico-política: econômica no sentido da revolução social; política no sentido da supressão do Estado. (BAKUNIN; 2003, p. 249)

Dentro do que já foi esboçado, podemos entrar na questão central que é a articulação de uma perspectiva de análise materialista com a de transformação social. Isso implica a discussão quanto às mediações necessárias entre o atual estado de coisas que temos e a busca de sua superação, para o que almejamos. Sabemos da condição adversa em que se apresenta a classe trabalhadora como um todo, tanto no que tange às suas condições materiais, mas também em ideais. A penetração da ideologia burguesa joga nossa classe à passividade e ao confinamento em termos de perspectiva de transformação social. Tais idéias ganham amplitude universal e passam a ser aceitas como verdades inquestionáveis, estando em pleno compasso com a reprodução dessa realidade, ou seja, com a exploração e a dominação entre os homens.

Não são pelas idéias que se dão as transformações e sim pelos fatos e ações concretas, como nos ensina o materialismo. Mas quando falamos ações, implica, como já expusemos, em algo que a motive, seja por uma necessidade material imediata, seja, posteriormente, por aspectos mais idealizadores. No entanto, o que nos faz tomar partido pela revolução social não é um desejo ou gosto por grandes acontecimentos. Trata-se de uma possibilidade, bem como de uma necessidade históricas, de homens e mulheres tomarem para si o domínio de suas atividades, de suas próprias vidas. Para tanto, as transformações sociais só poderão se efetivar existindo condições objetivas para tal. Ficaríamos de braços cruzados, então, esperando estas “condições objetivas” se apresentarem? Negativo, pois não se trata de uma fatalidade. Iremos então “conscientizar” a classe trabalhadora para que tenhamos tais condições? Também não é essa a questão, pois cairíamos numa perspectiva idealista.

Pois bem, ocorre que a perspectiva materialista não deve servir somente para teorizarmos, assim como ela não se trata de algo mecânico. Teoria e prática não se cindem ou perderemos força nos dois aspectos. É nesse sentido que também devemos buscar a organização das forças do proletariado sob a perspectiva materialista, que também é tomado enquanto método de mobilização e organização. Dizemos, portanto, que a luta emerge sob uma base material, pois é a partir e em cima dela que se constrói uma coesão concreta e histórica entre a classe trabalhadora.

A base dessa grande unidade, que procuraríamos em vão nas idéias filosóficas e políticas do dia, encontra-se inteiramente dada pela solidariedade dos sofrimentos, dos interesses, das necessidades e das aspirações reais do proletariado do mundo inteiro. Esta solidariedade não deve ser criada, ela existe na realidade; constitui a própria vida, a experiência cotidiana do mundo operário, e tudo o que resta a fazer é torná-la conhecida deste mundo e ajudá-lo a organizá-la conscientemente. É a solidariedade das reivindicações econômicas. (BAKUNIN, 2001, p. 66)

Embora as lutas possam emergir assumindo inicialmente um caráter mais reivindicativo (o que de forma alguma quer dizer que este seja necessariamente reformista), remetendo a uma questão mais central que aglutina a classe trabalhadora em uma unidade dentro de uma diversidade, elas devem ser trabalhadas na perspectiva de que tais lutas possam elevar-se a um nível maior, de luta política de intenção revolucionária. Portanto, a unidade dos trabalhadores se dá especialmente sob bases materiais e no desenrolar da luta. Não existe pedagogia melhor que a própria luta de classes. Não existe educação mais revolucionária do que a própria prática de luta da classe trabalhadora organizada assumindo seu protagonismo nelas, cindindo, agora sim, com a ideologia burguesa na medida em que constrói uma política própria, dos trabalhadores explicitando o antagonismo de classe, estes sim expressos em termos de consciência de classe.

Entendemos dois espaços indispensáveis, mas distintos, não antagônicos, de organização: o social, relativo ao meio o qual se insere (universidade, fábrica, local de moradia etc), que é o espaço próprio de organização e construção de poder popular, os movimentos sociais em geral; e um especificamente político, programaticamente anarquista. Devemos ter clareza quanto ao papel que cabe a organização política e aos movimentos sociais. Considerando que elas possuem dinâmicas distintas, mas que, não significa dizer que sejam opostas, possuindo papéis diferenciados na luta de classes. Mas se entendemos que as organizações populares, a classe trabalhadora organizada e apoiada em seus próprios mecanismos de decisão é o agente principal de transformação, porque a necessidade de se organizar enquanto anarquista? Estamos de acordo com Bakunin quando ele diz que “toda a determinação em teoria corresponde fatalmente a uma exclusão, a uma eliminação na prática.” (Bakunin, 2001, p. 59). Portanto, os movimentos sociais, a classe trabalhadora organizada em geral, aglutinam-se em questões mais concretas e tendem a deterem-se às particularidades de seu movimento e espaço de luta. E isso é salutar e indispensável. Mas com a Organização Política de intenção revolucionária ocorre o contrário: o que ela perde em força numérica, deve ganhar em teoria e em programa política a ser defendido, pois irá pensar não só de forma global, coordenando forças em diferentes locais de atuação, como também em longo prazo, não caindo na imediaticidade, pois tem um programa político mais claro e definido. Aqui é importante colocar que não estamos falando de uma hierarquia, podendo parecer de forma implícita, da organização política (a qual a princípio seria responsável pela elaboração teórico-programática) e as organizações de massas (responsáveis pela ação prática). As organizações de massa (entidades, sindicatos etc) são espaços de construção da teoria revolucionária e de seu programa, ou ainda melhor, são nelas em que fundamentalmente se constrói a luta e todas as suas implicações.

[...] o que denominamos ideal do povo não tem nenhuma analogia com as soluções, fórmulas e teorias político-sociais laboradas fora da vida deste, por doutos ou semidoutos, que têm a liberdade para fazê-lo, oferecidas de forma generosa à multidão ignorante como a condição expressa de sua futura organização. Não temos a mínima fé nessas teorias e as melhores dentre elas dão-nos a impressão de leitos de Procusto, muito exíguos para conter o amplo e poderoso curso da vida popular. (BAKUNIN, 2003; p. 237)

Como devemos lutar contra a fragmentação da classe trabalhadora, por uma unidade política, sem desconsiderar o fato de que suas variadas frações nunca terão o mesmo grau de consciência revolucionária, as organizações de massa, a organização popular a partir de seu local de trabalho ou moradia, devem ser tratadas como o elemento central na transformação social. Primeiro porque esta unidade deve ser real, fruto de acumulo de forças, experiências e de um processo em que o protagonismo de classe é elemento indispensável para um processo revolucionário. A segunda questão é que a Organização política anarquista deve ser uma expressão política dos interesses históricos de emancipação da classe trabalhadora, lhe dando um suporte teórico e material (militância presente e atuante). A Organização não se põe nem acima, nem mesmo as representa, pois só a classe trabalhadora organizada pode falar por si.

Uma questão importante a ser identificada é que existem pesos diferentes, uns mais relevantes outros menos, entre as várias frações do proletariado em cada realidade. Em termos de capitalismo, a classe operária, aquela que lida diretamente com a transformação da natureza é, na medida de sua posição estratégica em um sistema mundial de dominação, a classe revolucionária. Isso não quer dizer desprezo a umas frações de classe e privilégio a outras, mas serve para entender, por exemplo, que determinados setores, quando mobilizados e em luta, causam mais impacto a estrutura econômica do que outros. Saber identificar quais são eles e buscar a inserção nestes espaços é ponto estratégico.

Porém, fazemos lutas nas condições que temos, não como queremos, mas tendo como norte sempre a ampliação das frentes de atuação e considerando que a obra de emancipação humana é tarefa de toda a classe trabalhadora.

Bibliografia:

BAKUNIN, Mikhail. Escritos contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001.

_________, Mikhail. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003.

_________, Mikhail. Federalismo, Socialismo e Antiteologismo. São Paulo: Cortez, 1988.

_________, Mikhail. Obras v. 3. Madrid: Ediciones Jucar, 1977.

PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Lisboa: Estampa, 1997.

PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistemas das contradições econômicas ou Filosofia da Miséria. Tomo I. São Paulo: Ícone, 2003.


[1] Metafísica, no sentido em que aqui coloca Proudhon, significa a própria filosofia.