quarta-feira, 6 de junho de 2007

[CAZP] Teoria e Ideologia

Material de debate teórico-político

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

Alagoas, Janeiro 2007

Tema: Teoria e Ideologia

Entre a Teoria e a Ideologia: onde fica o anarquismo?

A discussão e discernimento entre teoria e ideologia não pode ser encarado como qualquer coisa, algo de menor importância. Precisar o lugar de cada uma, onde elas surgem e como elas incidem é possibilitar uma prática política mais condizente com a luta dos trabalhadores.

Entre renomados nomes do anarquismo, a discussão de teoria e ideologia não aparece tão clara, até mesmo pela pouca precisão conceitual o qual muitas vezes trabalhavam. Nisso resulta, por exemplo, numa confusão que tende ora a identificar o anarquismo enquanto uma teoria, ora como uma ideologia. Para começar a resolver essa questão, entendemos que pôr o anarquismo enquanto uma corrente política distinta, mas constituída no seio do movimento socialista, é o ponto de partida.

Na história do anarquismo encontramos Kropotkin a quem insistiu em dar ao anarquismo o status de ciência, estabelecendo um desastroso diálogo com o positivismo na medida em que tomava as ciências naturais e seus métodos como os parâmetros para entender a sociedade humana, afirmando, inclusive, uma negativa a dialética. Em contraposição, Malatesta afirmava que o anarquismo é uma “aspiração humana, que não se funda sobre nenhuma necessidade natural, verdadeira ou suposta, e que poderá se realizar segundo a vontade humana”, o que até poderíamos concordar (ainda que com ressalvas) se ele não acrescentasse dizendo que: “Pode-se ser anarquista com qualquer sistema filosófico preferido” (Anarquismo e Ciência). O que podemos dizer quanto a estas duas perspectivas?

Para começar a elucidar esta questão faz necessário identificar, a luz da história, o surgimento das idéias e práticas anarquistas. Nesse sentido, só podemos identificar o anarquismo surgido no próprio seio da luta de classes. A experiência revolucionária na França em 1793 e a chamada “primavera dos povos” alastrada em praticamente toda a Europa em 1848 são dois marcos para o surgimento em contornos mais claros e diferenciados, no seio da própria luta dos trabalhadores, daquilo que seria identificado enquanto anarquismo. A experiência de uma revolução política (França em 1793) em que ascende uma nova classe dominante com a de um movimento de caráter mais social, mas de orientação predominantemente estatista (1848), vai fazer com que Bakunin conclua “que a liberdade sem o socialismo é o privilégio, a injustiça; e que o socialismo sem liberdade é a escravidão e a brutalidade”. A Plataforma Organizacional do Grupo Dielo Trouda nos diz que

[...] o anarquismo não se origina de reflexões abstratas nem de um intelectual ou filósofo, mas sim da luta direta de trabalhadores contra o capitalismo, das carências e necessidades dos trabalhadores, das suas aspirações à liberdade e igualdade, aspirações que se tornam particularmente vivas no melhor período heróico da vida e luta das massas trabalhadoras. (MAKHNO, 2001, p. 40)

Portanto, entendemos que o anarquismo surge conjugado em análises e experiências da luta revolucionária, extraindo daí elementos impulsionadores de sua ação. Assim, podemos dizer que o “anti-estatismo”, tomado enquanto parte integrante de uma ideologia anarquista, se assim poderíamos dizer, que em determinada medida orienta e motiva uma prática política identificada com o anarquismo, não surgiu da cabeça de um gênio, muito menos do nada. Ele é circunscrito em um processo de formulação teórica, a qual é realizada junto a uma determinada realidade e a uma incidência nela (luta). No entanto, não existe teoria inocente, e nela também encontramos elementos ideológicos que nos fazem tomar parte sob este ou aquele ponto de vista, ou enfatizar este ou aquele elemento.

No documento Huerta Grande (A importância da Teoria) da Federação Anarquista Uruguai, teoria e ideologia são assim definidos:

* Teoria – conhecimento de determinada realidade, objeto, com formação de conceitos. Estes servem de instrumento para apreensão e explicação de uma dada realidade, mas entendendo a primazia do ser sobre o pensamento, ou seja, da realidade perante o conhecimento que se tem dela.

* Ideologia – trata-se de um elemento não cientifico, servindo como um estímulo à ação. Ainda que não mecanicamente, ela está vinculada pelas condições objetivas.

Concluiu-se assim que: “A teoria precisa, circunstancializa as condicionantes da ação política: a ideologia a motiva e impulsiona, configurando-a em suas metas ‘ideais’ e seu estilo” (Huerta Grande).

Pois bem, podemos identificar vários elementos que surgem no anarquismo enquanto princípios. No entanto, para que estes possam se constituir enquanto tais é necessário fazer justamente o que foi feito por Bakunin: aliar a experiência histórica com a análise cientifica. Mas ainda assim, é preciso livrar o anarquismo de um grande mal que lhe ronda: o pouco cuidado com o acabamento teórico, a precisão conceitual. Nos diz Makhno, à luz da experiência histórica da revolução russa, que

Embora o ideal anarquista seja potente, positivo e incontestável, acusa ainda algumas lacunas, entra ainda muito pelos lugares comuns abstratos e vagos e as divagações por domínios que não têm nada a ver com o movimento social dos trabalhadores. É daí que provém a possibilidade de interpretar erradamente as aspirações do anarquismo e o seu programa prático. (MAKHNO, 2001; p. 25)

Nesse sentido, ao evocar aos quatro ventos princípios ideológicos como “autogestão”, “federalismo” ou “ação direta” sem estes se articularem como fruto de uma reflexão teórica quanto a totalidade social, teremos como resultado somente palavras vazias, ou, mesmo encontrando algum eco, não conduzirão a luta sob bases sólidas, nem mesmo poderão ser tomadas como ponto de partida. Não é à toa que o anarquismo muitas vezes surja como uma “doutrina moralista”, pois, ao não solidificar suas concepções, ao não aprofundar e atualizar seu programa e postulados teóricos na medida da exigência das experiências históricas, a orientação para a militância anarquista acaba procedendo-se de valores éticos, de atitudes, conduta, que irão lhe balizar e orientar, por exemplo, a definição de campos de ação. Assim procedendo, não faremos algo muito diferente daqueles que jogaram o anarquismo a um “estilo de vida” ou uma “filosofia de vida”.

O que deve orientar em todos os sentidos a militância anarquista e sua inserção na luta dos trabalhadores são as necessidades e possibilidades históricas da classe trabalhadora, identificadas pelo seu arsenal teórico, e não “preferências pessoais” ou questões de “conduta”, valorativas (ideológicas). Não que estas últimas não possam ser representativas quanto ao alcance e possibilidade de luta em um espaço de organização dos trabalhadores. No entanto, não podem ser tomadas como o cerne da questão.

De fato, problemas de teoria existem e na medida em que o anarquismo se ocupou pouco em resolvê-los seriamente eles se tornaram muitos. Mas os problemas de teoria sempre existirão por mais que se possa lançar-se com ardor no trabalho teórico. Todavia, ocupar-se com este trabalho é imprescindível. Recorrendo mais uma vez a Makhno, ele alerta que

As massas exigem uma resposta clara e precisa dos anarquistas a respeito destas e de muitas outras questões. E, a partir do momento em que os anarquistas declaram uma concepção de revolução e da estrutura da sociedade, eles são obrigados a dar uma resposta clara à todas estas questões, relacionar a solução destes problemas à concepção geral de comunismo libertário, e devotar todas as suas forças à realização destes. (MAKHNO, 2001; p. 46)

São notórias as diversas lacunas teóricas presentes no anarquismo, e que pouco foram aqueles que se ocuparam em aprofundá-las e contextualizá-las. De Bakunin na Guerra Franco-Prussiana ao Imperialismo Norte-Americano, várias foram as experiências de luta, as mudanças no mundo do trabalho e pouco o anarquismo disse quanto a elas. Os clássicos jamais deixarão de ser referência, suas bases e essência permanecem, mas evidentemente não poderiam suprir as questões que não se apresentaram, não existiam, na sua época. Nesse interino, várias formulações e explicações foram feitas e é preciso se apropriar delas. Isso não é enterrar o anarquismo, mas compreender uma latente debilidade teórica, que não se trata de algo intrínseco, mas fruto de vários desdobramentos históricos (inclusive de luta contra o anarquismo). Reconhecer isso serve justamente para possibilitar ao anarquismo sua renovação (não revisão), dar ao mesmo fermento para poder, sendo o caso, construir análises próprias e diferenciadas, suprimindo lacunas ou, ao menos, lhe dando mais vigor e consistência. Enfim, é por o anarquismo no lugar que lhe cabe: enquanto alternativa concreta para a luta dos trabalhadores.

A Organização Política e o Trabalho Teórico

Uma organização política que se pretende revolucionária, não pode tomar uma postura vacilante frente aos desafios teóricos, caso contrário sua prática política estará comprometida e sua ação tornar-se-á estéril. Terá que ser capaz de dar respostas rápidas e precisas em diferentes situações, conjunturas e formações sociais. Saber identificar os pontos estratégicos preponderantes no sistema mundial de exploração, com as particularidades que este assume na realidade local (em nosso caso, em um país de terceiro mundo e com toda uma formação histórico-social diferenciada) é indispensável. Compreender as possibilidades de desenvolvimento da luta de classes numa perspectiva revolucionária, sua capacidade de ampliação e sustentação, também não são menos importantes.

Sendo o trabalho teórico formulado na perspectiva do Trabalho, da apreensão mais aproximada possível da realidade, ele não pode, como muitas vezes é recorrente na esquerda, servir para ratificar e justificar a prática da Organização ou Partido. É daí que surgem as concepções messiânicas, muito presente nas organizações de tipo leninistas, de um único partido, auto-suficiente, auto-intitulado de legitimo representante da classe trabalhadora.

Na prática, o que ocorre nessas situações, e o stalinismo seria o seu grau mais elevado, é o estabelecimento de uma relação mecânica (por mais que se apresente enquanto “dialética”) entre teoria e prática política. Ou seja, o puro pragmatismo da luta passa a orientar o trabalho teórico, tornando-se este uma ferramenta luxuosa para justificar a rasteira prática política adotada. Com isso, a Organização/Partido pode até mesmo crescer e ficar mais forte no movimento, no entanto, o resultado é uma grosseira falsificação da realidade (ideologização) e uma trágica conseqüência para a luta dos trabalhadores, muitas vezes expostas nos momentos mais decisivos, de vida e de morte, da luta de classes.

A teoria não é uma construção feita à margem da luta de classes, pois é somente imerso nas lutas vivas e concretas dos trabalhadores que se pode ter a possibilidade de desenvolver a atividade teórica de maneira a expressar as perspectivas que se abrem no seio da própria luta de classes. Então, segundo Bakunin, “se ninguém tem e pode ter a pretensão de outorgar a verdade, devemos procurá-la. Quem a procura? Todo o mundo, e principalmente o proletariado que tem sede e necessidade dela mais do que todos os outros” (2001, p. 75). Isso implica que, ao contrário do que se costumou ver no movimento dos trabalhadores, formulações que não buscam a constatação dos fatos tal como eles são, e não como desejamos, seja porque poderia ser vantajoso para o fortalecimento da nossa Organização, seja por outro motivo qualquer, não podem levar o movimento dos trabalhadores, à luta pela emancipação humana, senão à total deturpação de suas necessidades e possibilidades históricas.

Pode-se incidir sobre a realidade e desempenhar uma prática política junto aos trabalhadores sem um maior trabalho teórico, estando baseado em uma visão de mundo mais ou menos homogêneo, em aspectos mais ideológicos, e isso, muitas vezes, é o ponto de partida inevitável. Mas para de fato empreender uma luta conseqüente com a perspectiva do Trabalho e não se perder nos fenômenos e nas aparências, é necessário ter elementos que permitam não simplesmente tatear a realidade e deduzir conclusões, mas sim, poder apontar e precisar as circunstâncias e possibilidades que se formam e se abrem em cada conjuntura e momento histórico. Este trabalho não tem fim, faz parte de um processo histórico, pois, tendo o ser primazia quanto ao pensamento, a formulação teórica sempre irá esbarrar em seus limites históricos, ou não seria conhecimento cientifico, e sim místico, teológico ou coisa semelhante. Para incidir sobre a realidade é preciso conhecê-la.

“[...] à ação revolucionária secretamente organizada dos indivíduos e dos círculos, tomando por base que estes últimos não caíram do céu, mas fazem parte da mesma realidade, eles são modelados por ela e, à sua maneira, ainda que sob uma forma reduzida, exprimem esta realidade, sob a condição, evidentemente, de que círculos e indivíduos estudem atentamente, escrupulosamente e sem se causar a mínima ilusão, a realidade sobre a qual eles querem agir.” (Bakunin, Carta a Petr Lavrov; 1870)

Ter a leitura correta da realidade (ou mais aproximada) nos permite não só avançar teoricamente, mas também politicamente, mesmo que isso não represente em um primeiro momento influência de maior relevância nas massas trabalhadoras. Pois ter uma leitura correta, não significa atrair para si o maior número de pessoas. Mas para uma Organização Política é, sobretudo, não andar em círculos e ter possibilidade de despender energias e forças da forma mais concreta e positiva para a luta dos trabalhadores em sua perspectiva revolucionária.

O método como base para a construção teórica

Como os anarquistas lidaram com os problemas de teoria? Leandro Konder, em “A derrota da dialética” tece criticas corretas aos anarquistas brasileiros no momento histórico tratado (inicio do séc. XX), sendo representativo a um processo que se consumava no anarquismo e que tomará as conseqüências mais trágicas na Espanha em 1936.

O pior dessa disponibilidade eclética para acolher e justapor pensamentos que se moviam em linhas diferentes [as várias correntes anarquistas] é que, se por um lado ela era expressão de certa “abertura espiritual” antidogmática, por outro ela decorria de uma falta de rigor que impedia o reconhecimento dos problemas concretos a serem resolvidos pela teoria: dava-os por resolvidos antes de sequer identificá-los. (KONDER, 1988; p. 106)

O autor completa que “da combinação acrítica de idéias tidas como de “esquerda” ela passa, naturalmente, à combinação de idéias de “esquerda” com idéias de “direita”, cedendo a ilusão de subordinar com facilidade estas àquelas.” (idem). Não se trata de assumir o “bakuninismo”, “malatestianismo” ou algo do tipo, o que também não é fazer pouco caso quanto às diferenças de concepção que toma o anarquismo ao longo de sua história. O fundamental é o compromisso que devemos assumir com o conhecimento da realidade, o rigor critico, que desenvolve, refuta, absorve e supera elementos do anarquismo e de sua prática política construída ao longo de sua história, para viabilizar o êxito na luta incessante pela emancipação humana.

Como lidar com todas essas questões? O primeiro passo, no nosso entender, é identificar um erro que historicamente vem sendo feito, em maior ou menor grau, que é a pluralidade metodológica que acaba esterilizando o anarquismo, e sendo assim, não dar para conciliar Bakunin com Kropotkin sem destruir a própria possibilidade de se construir firmes alicerces teóricos. Se os problemas teóricos existem e sempre existirão, eles só poderão ser superados pelo método de apreensão da realidade, pois ela representa a base e o meio de construção teórica. É esta ferramenta que permite superar equívocos teóricos e na prática política anarquista, estando em compasso com as próprias experiências históricas.

Entender a importância do método e de seus elementos centrais é compreender a existência de uma universalidade e uma totalidade social construída por um fio condutor. Este, por sua vez, sob nossa ótica materialista é o Trabalho, pois representa o ato material fundante do ser social, “o ato pelo qual o homem, tornando-se criador, forma seu mundo, as bases e as condições de sua existência humana, e conquista, ao mesmo tempo, sua liberdade e sua humanidade” (Bakunin, 1988, p. 42). Não é o caso de cair num esquema economicista, porém também não se pode cair nas formulações pós-modernas que “afirmam”, por exemplo, que o poder está em todo lugar, ao mesmo tempo em que não está em lugar algum.

Bibliografia

BAKUNIN, Mikhail. Bakunin por Bakunin (cartas). Coletivo Sabotagem.

_________, Mikhail. Escritos contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001.

_________, Mikhail. Federalismo, Socialismo e Antiteologismo. São Paulo: Cortez, 1988.

FAU, Federação Anarquista Uruguaia. A importância da Teoria - Huerta Grande (texto)

KONDER, Leandro. A Derrota da Dialética: a recepção das idéias de Marx no Brasil até os anos trinta. Rio de Janeiro; Campus, 1988.

MAKHNO, Nestor. Anarquia e Organização. São Paulo. Luta Libertária, 2001

MALATESTA, Errico. Anarquismo e Ciência (texto)

PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistemas das contradições econômicas ou Filosofia da Miséria. Tomo I. São Paulo: Ícone, 2003.

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