quarta-feira, 6 de junho de 2007

[CAZP] Materialismo e Idealismo

Material de debate teórico-político

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

Alagoas, Janeiro 2007

Tema: Materialismo x Idealismo

Considerações iniciais

É conhecida a atribuição feita ao anarquismo de que este seria idealista. Mesmo que se colocasse “subjetivamente” favorável ao materialismo, suas práticas concretas e conclusões teóricas advinham de uma perspectiva idealista, a qual, normalmente, atribui à vontade humana o papel determinante na transformação do mundo. Tal é a perspectiva que normalmente enquadram o anarquismo.

De fato, podemos identificar aspectos idealistas em certos pensadores do anarquismo, ou mesmo transformando-se na própria base de suas formulações teóricas. Aliado a isso temos interpretações confusas e a-históricas do anarquismo, proferidas muitas vezes pelos próprios anarquistas, revestido de um evolucionismo com doses de naturalismo, que parecem confirmar esta suposta verdade. Aqui podemos citar Kropotkin e o historiador inglês do anarquismo George Woodcock, que chegam a ir até à filosofia grega e da China Antiga ou mesmo nas seitas cristãs heréticas da Idade Média para buscar as raízes do pensamento anarquista. Nada mais jocoso.

Ora, o próprio anarquismo não é outra coisa senão um produto concreto, histórico, que tem origem sob determinadas condições materiais. O anarquismo se circunscreve no momento de ascensão e consolidação da burguesia enquanto classe dominante, com suas revoluções burguesas, que darão novas formas de produção e reprodução da vida social, novas bases materiais e também filosóficas.

Se a base material, concreta, de formação do pensamento e prática política anarquista foi a própria sociedade burguesa em formação, com o predomínio da relação de trabalho assalariado, sob que bases filosóficas o anarquismo vai firmar seu espaço? Responder a essa pergunta não é tarefa fácil. Tomamos, para inicio da discussão, aquele quem primeiro deu uma conceituação positiva ao anarquismo, estamos falando, pois, de Joseph Proudhon. Este francês foi um dos mais influentes socialistas de sua época. Suas primeiras obras, “O que é a propriedade?”(1840) e “Filosofia da Miséria”(1846) têm como alicerce a crítica à economia política inglesa e ao socialismo utópico francês, que é basicamente o ponto de partida para o socialismo, não diríamos “cientifico”, mas fundado em uma análise concreta do capitalismo na perspectiva de sua superação.

Assim vemos posto, talvez pela primeira vez de forma criteriosa, a necessidade e possibilidade de superação do regime de propriedade privada e o fim do antagonismo entre as classes, o que significa o fim delas. Mas para isso, foram necessárias determinadas condições para possibilitar a apreensão da questão. Afinal, a luta de classes já existia antes que alguém a tomasse como objeto de estudo e a transformasse em conceito.

Proudhon vai colocar a ligação entre economia e filosofia. Não se pode entender a economia sem que não a trate também enquanto filosofia, e essa observação é muito importante, pois trata de dizer que a organização econômica é também resultado de concepções em termos de filosofia e não algo simplesmente dado, desconectado de uma visão e compreensão de mundo.

[...] a ciência econômica é para mim a forma objetiva e a realização da metafísica; é a metafísica em ação, a metafísica projetada sobre o plano fugaz da duração e todo aquele que se ocupa das leis do trabalho e da troca é verdadeiramente e especialmente metafísico[1]. (PROUDHON, 2003, p85-6)

Nesse sentido Proudhon vai se ocupar na investigação das considerações da economia política e critica os socialistas utópicos por estes abdicarem de entendê-la e superá-la, acabando por tentar “reconstruir a sociedade sob bases inexistentes”. Em uma crítica feita à economia política por Proudhon, este coloca que o vício daquela é “afirmar como estado definitivo uma condição transitória”. Aqui, a despeito até mesmo das criticas feitas por Bakunin que afirmava que Proudhon ia do direito à economia, e não da economia ao direito, Proudhon vai concluir que se a economia política é falsa, a jurisprudência enquanto uma ciência do direito e do costume é ainda mais falsa, pois se pauta pelo “princípio da apropriação individual e da soberania absoluta dos indivíduos”. Consiste que a economia política, ou seja, “o código ou rotina imemorial da propriedade”, junto com o Direito representam a “prática organizada do roubo e da miséria”.

Estas observações de Proudhon, por mais que ainda percorrendo o pensamento desse revolucionário ainda se possam apontar equívocos ao mesmo, como o próprio Bakunin fez ao dizer que o francês, por mais que tenha se esforçado “morreu metafísico” (idealista), são importantes para a construção de uma critica materialista da sociedade capitalista. Mais que isso, demonstram que o anarquismo só pôde ser anarquismo, sob determinadas condições materiais. E justamente sob estas condições materiais, atuando sob elas e apropriando-se daquilo que se formulou em idéias até então, é que o anarquismo pôde se desenvolver enquanto uma ferramenta não só ideológica, mas teórico-política no seio do movimento internacional dos trabalhadores.

Causalidade e Materialismo

Ter uma compreensão clara dos fatores que incidem no desenvolvimento da sociedade humana, sob que bases e condições esta se constrói, é poder pensar corretamente a realidade a qual ousamos transformar. Para isto é importante tomar a discussão entre realidade e pensamento, entre objeto e sujeito, ou simplesmente entre idéia e matéria. Iniciamos com alguns questionamentos. Onde o homem se situa no mundo e como se estabelece sua relação com o mesmo? Estamos falando de uma relação fundada no mero acaso, no mero reflexo de situações concretas ou de uma relação de deliberação? Ou não é tão simples e puro assim? E existe uma unidade no universo? Afirma Bakunin que

Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do Universo, todas as coisas existentes no mundo, qualquer que seja sua natureza, sob os aspectos da qualidade como quantidade, grandes, médias ou infinitamente pequenas, próximas ou imensamente distantes, exercem, sem o querer e sem mesmo poder pensar nisso, umas sobre as outras e cada uma sobre todas, seja imediatamente, seja por transição, uma ação e uma reação perpétuas que, combinando-se num único movimento, constituem o que chamamos de solidariedade, vida e causalidade universais. (BAKUNIN, 1988; p. 57)

No entanto, tal causalidade universal não é uma causa absoluta e primeira. Ela é mais uma “resultante produzida e reproduzida sempre pela ação simultânea de uma infinidade de causas particulares” onde “cada ponto atuando sobre o todo (aqui o universo é produzido), e o todo atuando sobre cada parte (aqui o universo é produtor ou criador)” (1977, p. 186). Trata-se da unidade real do universo, que não sendo nem pré-determinada, nem pré-concebida, é a eterna transformação, sem começo, limite ou fim: é a negação de Deus, pois com um “legislador” impondo arbitrariamente suas leis não poderia existir tal unidade. Portanto, é este movimento, o qual Bakunin denomina de causalidade universal, quem forma todos os mundos, desde o mineral até o animal (incluído o homem), a própria natureza. Estando o homem inserido nesta cadeia de relações e transformações mútuas, implica que ele está submetido à mesma, não podendo mais do que agir de acordo com os limites impostos pela natureza a qual ele faz parte. O homem atua e age em virtude das leis da própria natureza, produto e produtora da causalidade universal, portanto, não pode detê-las nem mudá-las por ação e vontade livre e espontânea. Sendo assim, o homem não cria a matéria, ele antes de tudo parte dela. Ou seja, “o homem com sua inteligência magnífica, suas idéias sublimes e suas aspirações infinitas, nada mais é, como tudo o que existe neste mundo, que um produto da vil matéria.” (2000; p. 13)

Sob este aspecto, a consciência humana é determinada pela condição material, a qual ela surge como expressão ideal (não necessariamente verdadeira) de uma dada realidade material. E é por isso que não existe vontade livre, pois a própria vontade humana está determinada pelas condições materiais de existência que é precisamente a base para qualquer entendimento quanto às necessidades e possibilidades históricas de desenvolvimento da humanidade.

Materialismo e Subjetividade

O ponto de partida da vida animal é a luta pela própria vida. Antes de tudo, os seres vivos de todas as espécies necessitam estabelecer as condições mínimas para a garantia de sua existência, não somente da vida individual, mas de sua própria espécie. São sob tais condições que se dão todos os desenvolvimentos e a satisfação das necessidades tanto enquanto individuo quanto da espécie, mesmo que este desenvolvimento e necessidades se limitem aos mais elementares, os vitais, para nascer, crescer e até morrer. No entanto, este desenvolvimento e a satisfação de suas necessidades, apresentam-se de forma diferente nas variadas espécies e entre o homem e os demais animais de forma totalmente distinta.

Nas sociedades de animais todos os indivíduos fazem exactamente as mesmas coisas: um mesmo génio os dirige, uma mesma vontade os anima. Uma sociedade de animais é um conjunto de átomos redondos, curvos, cúbicos ou triangulares, mas sempre perfeitamente idênticos; a sua personalidade é unânime, dir-se-ia que um só eu os governa a todos. Os trabalhos que os animais o executam, quer individualmente, quer em sociedade, reproduzem o seu carácter traço por traço: assim como o enxame de abelhas se compõe de unidades da mesma natureza e igual valor, assim o favo de mel é formado pela unidade alvéolo, constante e invareàvelmente repetido.

Mas a inteligência do homem, destinada ao mesmo tempo para o destino social e para as necessidades da pessoa é de uma factura completamente diferente e é o que torna, por uma consequência fácil de conceber, a vontade humana prodigiosamente divergente. Na abelha a vontade é constante e uniforme, porque o instinto que a guia é inflexível e é esse o único instinto que faz a vida, a felicidade e todo o ser do animal; no homem, o talento varia, a razão é indecisa, portanto, a vontade múltipla e vaga: procura a sociedade mas foge das dificuldades da monotonia: é imitador mas amoroso das suas ideias e doido pelas suas obras. (PROUDHON, 1997; p.218-19)

Toda essa citação de Proudhon nos parece bastante oportuna. O pensador francês estabelece no universo humano, uma esfera subjetiva, a qual se trata de algo essencialmente humano. É precisamente nesta subjetividade, na possibilidade de, através da abstração e da construção de noções, formular idéias, que podemos delimitar a separação entre o mundo animal e o mundo dos homens. O mundo ideal consiste na “última e mais alta expressão de sua vida animal” (Bakunin, 1977; p. 199). Toda esta potência de abstração desenvolvida ao longo dos séculos, permite ao homem “conceber a idéia de totalidade dos seres, do universo e do infinito absoluto” (idem, p. 202). Ora, tal afirmação não nos remeteria a uma concepção idealista? Negativo. Esta diferenciação, a possibilidade intrínseca ao ser humano de adquirir conhecimento não para o individuo, mas para a humanidade em geral por fixar idéias, é que lhe dá a possibilidade de romper com sua animalidade, para assim construir um mundo histórico. Mas enquanto isto não se realiza em termos concretos permanece mera formalidade, não se constituindo em uma realidade.

O homem cria este mundo histórico pela força de uma atividade que encontrareis em todos os seres vivos, que constitui o próprio fundamento de qualquer vida orgânica e que tende a assimilar e a transformar o mundo exterior segundo as necessidades de cada um, atividade, consequentemente, instintiva e fatal, anterior a qualquer pensamento, mas que, iluminada pela razão do homem e determinada por sua vontade refletida, transforma-se nele e para ele em trabalho inteligente e livre. (BAKUNIN, 1988; p. 70)

A relação entre uma abelha e o seu meio, não é de transformação. Ela pode até se adaptar a uma realidade mais ou menos diferente da normalmente vivida pela sua espécie, desde que garanta sua reprodução, mas isso não representará progresso na espécie, pois não cria história. A história da abelha é, substancialmente, a mesma em qualquer tempo e espaço. A história de uma abelha é a história de todas as abelhas. O homem, ao contrário, é transformado em ser social e nesta qualidade, transformador de seu próprio meio, mais ou menos de acordo com suas necessidades e dentro das possibilidades históricas, concretas.

O que temos é que, se podemos dizer que o homem se diferencia dos demais animais pela sua capacidade de abstração, sua capacidade de pensar (inseparável da de fixar idéias), estas por sua vez, só se realizam pelo ato do trabalho. Pois, é somente com o ato material do trabalho que o homem irá transformar a natureza, o meio em que vive, e ao transformar este meio transformará a si mesmo na medida em que faz parte deste próprio meio. O Trabalho é, portanto, a mediação necessária estabelecida entre o homem e a natureza, uma ação concreta que constrói as bases e condições da existência da humanidade, pois não somos o que pensamos e sim o que fazemos, sendo, portanto, através desta ação concreta perante a natureza que o homem pode conquistar as condições para a plena satisfação de suas potencialidades. E é precisamente por isso que o Trabalho aparece como a categoria central e o fio condutor para apreensão e análise em nossa sociedade.

Mas como vimos, se o trabalho é o ato com o qual o homem transforma seu meio, esta transformação é impulsionada, num primeiro e primitivo momento, por necessidades básicas, vitais, da vida animal. Mas com a própria ampliação de suas necessidades e complexificação do mundo social, estas necessidades, este impulso, tende cada vez mais a ser dirigido por idéias. Mas como têm sido produzidas as idéias nos homens?

Pela constatação e por uma espécie de consagração dos fatos realizados, porque nos desenvolvimentos práticos da humanidade, tanto como na ciência propriamente dita, os fatos realizados precedem sempre as idéias, o que prova mais uma vez que o conteúdo do pensamento humano, seu fundo real, não é uma criação espontânea do espírito, e sim que é dado sempre pela experiência reflexiva das coisas reais. (BAKUNIN; 1977, p. 202)

Ou seja, a idéia em si não cria nada, antes de tudo, ela é uma resposta a uma dada situação. Mas esta resposta não pode ser entendida enquanto algo mecânico, meramente como reflexo material. Ela apresenta-se para os seres humanos enquanto uma resposta idealizada – mas não necessariamente realizada –, pois ordena e subordina-se às suas próprias necessidades, tomando escolhas de acordo com as opções abertas e abstraídas. Mas mesmo estas escolhas, esta idealização, não é algo simplesmente pessoal ou descolado da própria sociedade, da própria realidade material. Podemos diferenciar perfeitamente uma cadeira de uma mesa, mas esta e aquela podem ser idealizadas de diferentes formas (e assim foram ao longo da história) sem que deixem de ser uma cadeira ou uma mesa.

O que temos, portanto, é que os homens possuem a possibilidade de construir sua história. Assumirem uma posição não de simples objetos, mas de sujeitos ativos, devido a este aspecto subjetivo que como já dissemos, é algo essencialmente humano. Mas a história da humanidade não é a de seus pensamentos (idéias), o qual é limitado e determinado pela condição material, onde se conclui, portanto, que “o pensamento decorre, ao contrário, da vida, e que, para modificar o pensamento, é preciso transformar a vida” (Bakunin, 2003).

Isto não é desconsiderar a possibilidade das idéias incidirem sobre a própria vida, afinal, aquela também faz parte desta, mas entender que não mudamos a vida por um simples ato de vontade, até mesmo porque, esta própria vontade, não é algo que nasce no homem, e sim, é determinada por sua relação com as coisas e os demais homens. É preciso que exista uma base material que possibilite tal transformação.

A importância do método materialista para superação do capitalismo

O povo não é doutrinário nem filósofo. Não tem tempo nem hábito de se interessar por diversas questões ao mesmo tempo. Ao se apaixonar por uma, esquece das outras. Daí decorre, para nós, a obrigação de apresentar-lhes a questão essencial da qual, mais do que qualquer outra, depende de sua libertação. Ora, esta questão é indicada por sua própria situação e por toda sua existência; é a questão econômico-política: econômica no sentido da revolução social; política no sentido da supressão do Estado. (BAKUNIN; 2003, p. 249)

Dentro do que já foi esboçado, podemos entrar na questão central que é a articulação de uma perspectiva de análise materialista com a de transformação social. Isso implica a discussão quanto às mediações necessárias entre o atual estado de coisas que temos e a busca de sua superação, para o que almejamos. Sabemos da condição adversa em que se apresenta a classe trabalhadora como um todo, tanto no que tange às suas condições materiais, mas também em ideais. A penetração da ideologia burguesa joga nossa classe à passividade e ao confinamento em termos de perspectiva de transformação social. Tais idéias ganham amplitude universal e passam a ser aceitas como verdades inquestionáveis, estando em pleno compasso com a reprodução dessa realidade, ou seja, com a exploração e a dominação entre os homens.

Não são pelas idéias que se dão as transformações e sim pelos fatos e ações concretas, como nos ensina o materialismo. Mas quando falamos ações, implica, como já expusemos, em algo que a motive, seja por uma necessidade material imediata, seja, posteriormente, por aspectos mais idealizadores. No entanto, o que nos faz tomar partido pela revolução social não é um desejo ou gosto por grandes acontecimentos. Trata-se de uma possibilidade, bem como de uma necessidade históricas, de homens e mulheres tomarem para si o domínio de suas atividades, de suas próprias vidas. Para tanto, as transformações sociais só poderão se efetivar existindo condições objetivas para tal. Ficaríamos de braços cruzados, então, esperando estas “condições objetivas” se apresentarem? Negativo, pois não se trata de uma fatalidade. Iremos então “conscientizar” a classe trabalhadora para que tenhamos tais condições? Também não é essa a questão, pois cairíamos numa perspectiva idealista.

Pois bem, ocorre que a perspectiva materialista não deve servir somente para teorizarmos, assim como ela não se trata de algo mecânico. Teoria e prática não se cindem ou perderemos força nos dois aspectos. É nesse sentido que também devemos buscar a organização das forças do proletariado sob a perspectiva materialista, que também é tomado enquanto método de mobilização e organização. Dizemos, portanto, que a luta emerge sob uma base material, pois é a partir e em cima dela que se constrói uma coesão concreta e histórica entre a classe trabalhadora.

A base dessa grande unidade, que procuraríamos em vão nas idéias filosóficas e políticas do dia, encontra-se inteiramente dada pela solidariedade dos sofrimentos, dos interesses, das necessidades e das aspirações reais do proletariado do mundo inteiro. Esta solidariedade não deve ser criada, ela existe na realidade; constitui a própria vida, a experiência cotidiana do mundo operário, e tudo o que resta a fazer é torná-la conhecida deste mundo e ajudá-lo a organizá-la conscientemente. É a solidariedade das reivindicações econômicas. (BAKUNIN, 2001, p. 66)

Embora as lutas possam emergir assumindo inicialmente um caráter mais reivindicativo (o que de forma alguma quer dizer que este seja necessariamente reformista), remetendo a uma questão mais central que aglutina a classe trabalhadora em uma unidade dentro de uma diversidade, elas devem ser trabalhadas na perspectiva de que tais lutas possam elevar-se a um nível maior, de luta política de intenção revolucionária. Portanto, a unidade dos trabalhadores se dá especialmente sob bases materiais e no desenrolar da luta. Não existe pedagogia melhor que a própria luta de classes. Não existe educação mais revolucionária do que a própria prática de luta da classe trabalhadora organizada assumindo seu protagonismo nelas, cindindo, agora sim, com a ideologia burguesa na medida em que constrói uma política própria, dos trabalhadores explicitando o antagonismo de classe, estes sim expressos em termos de consciência de classe.

Entendemos dois espaços indispensáveis, mas distintos, não antagônicos, de organização: o social, relativo ao meio o qual se insere (universidade, fábrica, local de moradia etc), que é o espaço próprio de organização e construção de poder popular, os movimentos sociais em geral; e um especificamente político, programaticamente anarquista. Devemos ter clareza quanto ao papel que cabe a organização política e aos movimentos sociais. Considerando que elas possuem dinâmicas distintas, mas que, não significa dizer que sejam opostas, possuindo papéis diferenciados na luta de classes. Mas se entendemos que as organizações populares, a classe trabalhadora organizada e apoiada em seus próprios mecanismos de decisão é o agente principal de transformação, porque a necessidade de se organizar enquanto anarquista? Estamos de acordo com Bakunin quando ele diz que “toda a determinação em teoria corresponde fatalmente a uma exclusão, a uma eliminação na prática.” (Bakunin, 2001, p. 59). Portanto, os movimentos sociais, a classe trabalhadora organizada em geral, aglutinam-se em questões mais concretas e tendem a deterem-se às particularidades de seu movimento e espaço de luta. E isso é salutar e indispensável. Mas com a Organização Política de intenção revolucionária ocorre o contrário: o que ela perde em força numérica, deve ganhar em teoria e em programa política a ser defendido, pois irá pensar não só de forma global, coordenando forças em diferentes locais de atuação, como também em longo prazo, não caindo na imediaticidade, pois tem um programa político mais claro e definido. Aqui é importante colocar que não estamos falando de uma hierarquia, podendo parecer de forma implícita, da organização política (a qual a princípio seria responsável pela elaboração teórico-programática) e as organizações de massas (responsáveis pela ação prática). As organizações de massa (entidades, sindicatos etc) são espaços de construção da teoria revolucionária e de seu programa, ou ainda melhor, são nelas em que fundamentalmente se constrói a luta e todas as suas implicações.

[...] o que denominamos ideal do povo não tem nenhuma analogia com as soluções, fórmulas e teorias político-sociais laboradas fora da vida deste, por doutos ou semidoutos, que têm a liberdade para fazê-lo, oferecidas de forma generosa à multidão ignorante como a condição expressa de sua futura organização. Não temos a mínima fé nessas teorias e as melhores dentre elas dão-nos a impressão de leitos de Procusto, muito exíguos para conter o amplo e poderoso curso da vida popular. (BAKUNIN, 2003; p. 237)

Como devemos lutar contra a fragmentação da classe trabalhadora, por uma unidade política, sem desconsiderar o fato de que suas variadas frações nunca terão o mesmo grau de consciência revolucionária, as organizações de massa, a organização popular a partir de seu local de trabalho ou moradia, devem ser tratadas como o elemento central na transformação social. Primeiro porque esta unidade deve ser real, fruto de acumulo de forças, experiências e de um processo em que o protagonismo de classe é elemento indispensável para um processo revolucionário. A segunda questão é que a Organização política anarquista deve ser uma expressão política dos interesses históricos de emancipação da classe trabalhadora, lhe dando um suporte teórico e material (militância presente e atuante). A Organização não se põe nem acima, nem mesmo as representa, pois só a classe trabalhadora organizada pode falar por si.

Uma questão importante a ser identificada é que existem pesos diferentes, uns mais relevantes outros menos, entre as várias frações do proletariado em cada realidade. Em termos de capitalismo, a classe operária, aquela que lida diretamente com a transformação da natureza é, na medida de sua posição estratégica em um sistema mundial de dominação, a classe revolucionária. Isso não quer dizer desprezo a umas frações de classe e privilégio a outras, mas serve para entender, por exemplo, que determinados setores, quando mobilizados e em luta, causam mais impacto a estrutura econômica do que outros. Saber identificar quais são eles e buscar a inserção nestes espaços é ponto estratégico.

Porém, fazemos lutas nas condições que temos, não como queremos, mas tendo como norte sempre a ampliação das frentes de atuação e considerando que a obra de emancipação humana é tarefa de toda a classe trabalhadora.

Bibliografia:

BAKUNIN, Mikhail. Escritos contra Marx. São Paulo: Imaginário, 2001.

_________, Mikhail. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003.

_________, Mikhail. Federalismo, Socialismo e Antiteologismo. São Paulo: Cortez, 1988.

_________, Mikhail. Obras v. 3. Madrid: Ediciones Jucar, 1977.

PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade?. Lisboa: Estampa, 1997.

PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistemas das contradições econômicas ou Filosofia da Miséria. Tomo I. São Paulo: Ícone, 2003.


[1] Metafísica, no sentido em que aqui coloca Proudhon, significa a própria filosofia.

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