quinta-feira, 15 de maio de 2008

[CAZP] Declaração de Princípios

DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

Abril, 2008

-I-

Seção teórico-ideológica

a. Uma histórica luta entre oprimidos e opressores

A história da humanidade sempre foi a história de sua luta pela vida. É sob esta base real e primária da vida que a humanidade tal como conhecemos, se constituiu, desenvolvendo inclusive, a ciência e as artes. No entanto, essa luta sempre tomou formas diferentes ao longo de sua história e entendemos, tal como entendeu Nestor Makhno e seus camaradas, que “não há uma humanidade e sim uma humanidade de classes”.

A organização social da vida é um processo histórico especialmente fundamentado a partir da relação que homens e mulheres estabelecem com esta base primeira, a luta pela vida, tal como entre si. Um processo histórico, pois não se dá de maneira repentina, nem mesmo sem que carregue consigo marcas e acúmulo desta caminhada. Deste processo, determinam-se as formas de organização e reprodução da vida social em seus amplos aspectos (econômicos, políticos, culturais). E é a partir da análise deste processo que podemos identificar uma histórica luta entre oprimidos e opressores, dois pólos de luta que se enfrentam em diversos cenários do palco da história, um ansiando pela libertação e outro pela dominação e exploração.

Mas, se o exame da história da humanidade nos leva a constatar uma predominante presença de exploração e dominação entre homens e mulheres, como pensar ser possível pôr fim a elas? Enfatizava Bakunin que na vida humana não existem fatos consumados, sem que não sejam eles próprios, produtos da vida natural a qual também estamos inseridos, tal como as necessidades fisiológicas vitais, ou produtos da vida histórico-social. A primeira questão está aquém de nossas vontades sendo a “revolta” contra elas tão inútil quanto absurda. Mas aquilo que é produto da vida histórico-social não o é sem que não possa ser transformado radicalmente.

Nesse campo da vida, naquilo que é produto histórico-social, está localizado a exploração do trabalho humano e a dominação entre seus semelhantes. Aqui a revolta não só é possível, como sempre foi presente. Se a história da humanidade tem se apresentado como uma história atormentada, fruto de uma luta, a princípio entre iguais, mas que se constituem em posições antagônicas de interesses distintos, gerando exploração e dominação de uma maioria por uma minoria, não tem sido sem que não exista resistência e revolta.

Em razão disto, fazemos nossa opção pelos oprimidos contra os opressores, e constatamos a necessidade de opor a força e a violência dos opressores, com a força e a violência dos oprimidos em favor de fazer da história da humanidade não mais um tormento, mas o lugar em que esta realize a plenitude de suas potencialidades. A condição para isto é o objetivo histórico dos oprimidos: o fim da exploração e dominação na humanidade. Só a partir daí que podemos, agora sim, falar de uma única humanidade, a viver em solidariedade e a coincidir os interesses gerais com os particulares.

Mas há de se perguntar: por que até hoje isso não se realizou? A busca dessa resposta é, antes de tudo, a afirmação do já exposto. Estamos falando de um processo histórico, onde as condições materiais, as limitações e desenvolvimentos do conhecimento humano sobre si e sobre o mundo natural e social que o rodeia, as ideologias sedimentadas, tal como a intervenção de diversos agentes sociais e políticos, atuam na determinação desse processo.

Dos tempos em que basicamente se vivia em pequenos grupos, da pesca e da caça, de uma agricultura rudimentar, de esferas de organização e normatização da sociedade simples e sem maiores mecanismos de coesão social além da tradição e da força, para a sociedade burguesa de hoje, presente e influente em cada canto do mundo, de elevados padrões produtivos, tecnológicos e de uma complexa organização político-jurídica, ideológica e militar, daqueles tempos aos de hoje, o sangue dos que se rebelaram contra os que lhe oprimiam não foi em vão e nos inspiram.

Ensinou Bakunin que olhar e estudar o passado não pode ter outro sentido senão “para constar o que fomos e o que não devemos mais ser, o que acreditamos e pensamos, e o que não devemos mais acreditar nem pensar, o que fizemos e o que nunca mais deveremos fazer”. Trata-se de encarar a história não só como um legado, mas também como um aprendizado. O maior deles é que, da mesma maneira em que a maioria da humanidade não está fadada a viver eternamente sob o manto da ignorância, exploração e opressão, pois isso não é algo natural ou fora do domínio humano, é preciso encarar que o socialismo é uma possibilidade, não uma fatalidade.

Deste aprendizado acumulado da luta histórica entre oprimidos e opressores, enquanto militantes que assumem como compromisso a causa da emancipação social, extraímos práticas e análises no proveito do objetivo histórico dos oprimidos. Objetivo histórico, pois estes são os que com seu sangue e suor construíram e constroem a riqueza da humanidade. E no sentido deste horizonte de liberdade, inspiram o que de melhor se produz na ciência social e nas artes.

Trazemos conosco, enquanto espírito de rebeldia, a resistência ainda presente dos povos originários da América Latina e dos quilombolas, tal como dos combatentes contemporâneos da liberdade, operários e camponeses pobres, trabalhadores e oprimidos presentes em vilas e periferias, no batente e na enxada, lutando por terra, trabalho, moradia, saúde e educação. Nos oprimidos colocamos todas as nossas apostas e nossa luta deve ser para que a humanidade possa reverter o seu sentido histórico, e passe a caminhar no sentido da liberdade e da igualdade.

b. Os inimigos de sempre e os mecanismos de hoje

Os nossos inimigos nem sempre se apresentaram da mesma forma, nem mesmo se utilizaram dos mesmos mecanismos, ou então, poderíamos dizer que se utilizaram de um mesmo mecanismo primário de exploração do trabalho e de dominação sob variadas maneiras. São nossos inimigos – e assim os identificamos ao longo dos tempos, mesmo que sob nomes e formas diferentes – porque promoveram a exploração, a opressão e delas, tiraram proveito.

Os nossos inimigos já se chamaram de aristocratas, de nobres, de senhores, entre outros. Seu sistema de dominação já foi denominado como feudalismo, regime escravista, entre outras variantes exploradoras. Os inimigos de hoje atendem pelo nome de burguesia e o sistema por ela organizado, capitalismo. Seus mecanismos, em constante operação e cada vez mais articulados com uma rede de meios e instrumentos de dominação, são identificados no Capital e no Estado. É a exploração econômica e a dominação sócio-política que se fundem e se configuram para benefício de uma minoria.

O Estado e o Capital: o poder que vem dos ricos e para os ricos

“O que são a propriedade e o capital em sua forma contemporânea? Para o capitalista e o proprietário, significa o poder e o direito, garantidos pelo Estado, de viver sem trabalhar. E posto que nem a propriedade, nem o capital nada produzem sem estarem fertilizados pelo trabalho, isto significa poder e direito para viver explorando o trabalho de outro. Direito a explorar o trabalho de quem não tem nem propriedade nem capital e, portanto, se encontram forçados a vender sua força produtiva aos afortunados proprietários” (Bakunin)

O sistema capitalista é fundado sob a base de um regime de propriedade privada dos meios de produção (terra, instrumentos de trabalho, etc). Segundo a ideologia que o sustenta, os trabalhadores são livres. No entanto, pensamos com Bakunin que “o direito à liberdade, sem os meios para realizá-la, é apenas uma quimera”. Os trabalhadores, roubados dos meios concretos para que possam garantir sua sobrevivência, se veêm obrigados a vender sua força de trabalho para a classe dominante. Esta é a condição e o fermento para a manutenção de um sistema que garante a apropriação de lucros à burguesia e que divide seus prejuízos com os trabalhadores, que pagam ainda a conta mais alta. Para esta operação os capitalistas sempre encontraram no Estado o apoio político-militar e também financeiro, necessário para prosseguir com seus projetos.

As formas de acumulação de riqueza e exploração do trabalho de outrora e as do capitalismo do século XXI, mudaram bastante, atravessando vários períodos e fases: já foi mercantilista, colonialista, passando a monopolista e atualmente imperialista e ultra-monopolista. Mas a sua orientação – ou seja, também na gênese do capitalismo – permaneceu sempre a mesma. A centralização econômica e política caracteriza o seu modelo e estrutura a sociedade. No decorrer desse processo que concentra riqueza e distribui miséria, um complexo sistema de dominação evoluiu, tanto em seus meios materiais e repressivos, quanto científicos e ideológicos.

Ocorre que a ligação existente entre as esferas econômicas e políticas são estreitas e difíceis de delimitar território. Por isso, quem controla os meios de produção, as coisas, exerce controle também sob os indivíduos. O Estado vai atuar não somente como elemento de contenção entre Capital e Trabalho – ou, entre a burguesia e os trabalhadores – mas também como um agente econômico ativo importante, que organiza e administra sob o leme da classe a qual representa: a burguesia e suas variadas frações. A centralização é a tendência inevitável a se realizar pelo Capital e pelo Estado. É por isso, que no desenvolvimento da dominação burguesa, a concentração de empresas ou grupos empresariais, banqueiros etc., vem junto com o próprio estreitamento dos mecanismos decisórios.

Na mesma medida em que nos deparamos com uma realidade mundial de concentração de riqueza em poucos países, no Brasil também presenciamos uma exorbitante concentração desta na região Sudeste/Sul do país, em especial São Paulo. Os recursos a serem destinados e a organizar e financiar essas disparidades têm na centralização dos poderes a sua realização e reprodução. Por isso, identificamos no Estado e no Capital o poder que vem dos ricos e para os ricos.

A política e a ideologia burguesa: dominar e fragmentar

Clássicos do anarquismo, como Bakunin e Malatesta, afirmavam que a situação econômica era a situação real. Por isso, as formalidades jurídicas viram ficção, pois o trabalhador não está em iguais condições que o seu patrão. Isso se reflete no limitado acesso à educação, cultura e saúde. Assim como, uma dominação ideológica, potencializada por diversos instrumentos utilizados, desde a educação formal, a cultura propagada ou apropriada pela elite, passando pela grande mídia.

Essas leis sendo ficções, o cumprimento delas tende a ser executado somente no benefício das elites, que as elaboram e sancionam. As conquistas que são transcritas na forma de lei, foram resultados de mobilizações e lutas para tal, assim, o respeito a elas não é a lei sozinha que a faz, e sim, a permanência da luta e a construção ideológica que coíbe práticas contrárias.

Um dos mecanismos que mais põe às claras a política e a ideologia burguesa está nas eleições para os cargos do poder executivo e legislativo do Estado. O chamado sufrágio universal (as eleições parlamentares) ainda que seja contemporâneo à ascensão da burguesia à classe dominante, a partir de meados do século XVI, nem sempre foi o escolhido por ela. A presença de ditaduras e golpes sempre marcou a dominação burguesa, percorrendo desde a França de Bonaparte às ditaduras latino-americanas por volta da década de 70 do século passado. Daí, associar liberalismo com Estado democrático pode virar um grande engodo.

O chamado regime democrático, em tese, garante a liberdade de organização e imprensa, possibilita uma elevação à vida pública o que permite maior tranquilidade na organização e mobilização dos trabalhadores. Assim, ele é certamente preferível a um regime ditatorial. No entanto, não faz parte de nossa teoria semear enquanto política dos trabalhadores a política que é na verdade burguesa, ancorada naquilo que os anarquistas tradicionalmente classificaram como a “ilusão do sufrágio universal”, sempre se opondo a cair no jogo parlamentar.

Cabe o exemplo de Proudhon, que chegou a assumir cadeira legislativa na França (1848), mas constatou que nesta condição, estava cada vez mais distante do povo e do que acontecia nas ruas. Desde então, lutas foram travadas e como orientação ideológica determinou-se a centralização dos esforços e energias na mobilização direta dos trabalhadores, a partir dos seus próprios espaços (trabalho, moradia, etc.).

O que está no centro da discussão é a construção de uma política própria dos trabalhadores, que está diretamente vinculada à percepção e confiança em sua força, na construção de sujeitos históricos ativos, conscientes e convictos do seu papel. Confiança esta, que só pode ser ganha a partir do momento em que estes trabalhadores não só lutam, mas também decidem, exercem protagonismo. E o Estado só pode, e assim sempre o fez, mesmo quando dirigido por ex-trabalhadores – que ao mudarem de posição, mudam de perspectiva – continuar a representar os interesses da burguesia, no sentido de confundir, dispersar e fragmentar a força dos trabalhadores.

Desse modo, a política e a ideologia burguesa, seja sob qual manto busque refúgio (ditadura ou democracia), tem como objetivo dispersar a força do povo, que a tem justamente por ser povo, por não viver de parasitismo. A burguesia usa também da dominação para fragmentar, seja quando é feito a base do cassetete e pau de arara, seja quando articula sob um verniz de legalidade. E quando foi preciso, ela nunca pestanejou em romper com esta legalidade. Portanto, não há fim da exploração econômica, sem o fim da dominação político-ideológica.

Concluímos assim, que, se queremos construir outra sociedade, onde não existam mais classes sociais, pois todos contribuiriam na construção da riqueza da sociedade e desfrutariam dela em igual medida, entendemos que esta mudança não é mecânica, nem poderia ser, pois se trata de pessoas que vibram, sentem, choram, pensam e agem numa civilização construída não somente na base da exploração, mas também produzindo uma dominação branca, machista e repressora da opção sexual. Ou seja, pessoas de diversos lugares, com suas singularidades e formas de externá-las.

Portanto, entendemos que contribuir para desencadear um processo revolucionário é dar a força do povo, ao próprio povo. Possibilitar aos trabalhadores e trabalhadoras que eles/as, em cada canto, possam ter voz e efetivamente construam seu destino, com sotaque e maneiras diferentes de construir seu poder: o Poder Popular, que nasce do povo e é exercido por ele.

c. A nossa base ideológica – o porquê do anarquismo

Diante de uma realidade de miséria e exploração, o socialismo surgiu enquanto crítica a sociedade capitalista. O anarquismo se localiza enquanto uma corrente de pensamento e tradição de luta socialista, se inserindo enquanto uma variante das idéias e práticas construídas nesse campo. Ao longo de sua história, firmou determinados preceitos ideológicos que lhe deu um estilo e traçava metas. O anarquismo surge, então, como proposta de luta (articulando preceitos político-organizativos e teórico-ideológicos) em favor do interesse histórico dos trabalhadores.

No meio socialista, foram construídas ao longo da história, incorporando experiências, suas variantes que pensam a transformação da sociedade, mas sem romper com o que chamamos de ideologia estatista. Uma delas, que tomou uma perspectiva reformista e que tende a co-existir em harmonia com a divisão da sociedade em classes, ficou historicamente conhecida como social-democracia.

A principal referência histórica social-democrata, está no período conhecido como Estado de Bem-estar Social, no pós-Segunda Guerra Mundial. Neste período, países europeus vivenciaram relativos ganhos e concessões por parte do Estado, permitindo relativa melhoria de vida da classe trabalhadora. Porém, isso só foi possível, pensando no sistema mundial que é o capitalismo, por conta de realidades de extrema miséria, como no continente africano. Tratou-se somente de uma situação passageira e localizada, incapaz de ser generalizada, além do que limitada dentro dos próprios marcos da sociedade de classes.

Outras variantes denunciam corretamente como fracassada a via social-democrata e produtora de traidores de classe, mas não se desfaz da ideologia que continua a manter como centro da estratégia revolucionária: o Estado. Mantém a este uma função organizadora sob o verniz de ser uma política proletária. Fala-se em socialização dos meios de produção, de fim da propriedade privada, mas se mantém firme quanto a uma suposta necessidade de centralização estatal, ainda que posta como transitória. Os caminhos escolhidos na Revolução Russa têm aqui o principal exemplo.

Como já dito ao longo deste documento, pensamos a transformação da sociedade, a revolução social, tratando o protagonismo da classe trabalhadora como eixo central em nossa orientação política. Acreditamos ser esse o maior diferencial do anarquismo e a melhor justificativa para a afirmação de seu projeto enquanto alternativa na luta de classes, bem definida nos dizeres de Bakunin: “a liberdade sem o socialismo é o privilégio, a injustiça; o socialismo sem a liberdade é a escravidão e a brutalidade”.

Para nós, a crítica às ideologias estatistas em suas variáveis (reformista e revolucionária) como alternativas para cumprir o objetivo emancipatório, o qual deu razão a origem das idéias e práticas socialistas, é ponto batido. Não porque tudo já tenha sido dito ou por nós nos considerarmos auto-suficientes. Bem longe disso, mas sim, por simplesmente constatar que muitas das avaliações que a esquerda socialista de maneira geral fez frente a seus erros e práticas, que tendem a aparecer como “novidades”, já haviam sido prognosticadas pelos anarquistas. E não foram por “chute”, e sim, fruto de uma análise teórico-política bem definida. Nossa escolha por princípios de federalismo político e autogestão, ação direta e protagonismo de classe, nos apresenta, na história das lutas sociais, grandes obras e a possibilidade de visualizar um mundo que ponha fim aos exploradores e opressores. Sim, sabemos que não é tarefa fácil. Mas, o que pode parecer dar mais força e garantia de vitória, um caminho aparentemente mais óbvio e curto, pode na verdade ser apenas mais um canto da sereia e se pautar pela própria forma de fazer política dos dominadores.

Ao não centrar como eixo na construção de um projeto político o protagonismo dos trabalhadores, a conseqüência será a reprodução de formas de opressão. Seja como a de uma maioria que faz e uma minoria que pensa (ou uma casta intelectualizada e burocrata), seja a de uma localidade territorial ou “fração da classe trabalhadora” que faz a política e, uma outra, que a executa. O horizonte que almejamos não comporta tais métodos. Daí nossa proposição no fortalecimento da organização e luta dos trabalhadores, desenvolvendo e potencializado o exercício de seu protagonismo como forma de construir Poder Popular no local de trabalho, no espaço geográfico. É por isso que somos anarquistas.

-II-

Seção político-organizativa

a. Organização de intenção revolucionária e seu marco estratégico

A mobilização das massas deu a força necessária para conquistas históricas do povo, sem a organização em sindicatos, em associações de moradores, movimentos sociais e populares etc., essas vitórias não passariam de desejos individuais. Na medida em que esses desejos encontram um espaço que se transforma em construção coletiva, ele tem a possibilidade de ser vitorioso. São esses espaços que nos trazem um potencial e que podem apontar para transformação radical da sociedade.

No entanto essa é apenas uma das possibilidades. Espaços que aglutinam a classe em reivindicações mais imediatas não se transformam espontaneamente em espaços onde possa ser gestada a luta por nossa emancipação. Para termos êxito nessa tarefa precisamos de uma organização política, anarquista e que esteja nas lutas do povo.

As idéias socialistas podem se desenvolver em determinada categoria social sem, no entanto, existir a influência de uma organização política naquele meio. Militantes do meio social podem tender a se aproximar dessas idéias sem necessariamente estarem politicamente organizados, porém, nunca chegarão a levar acabo um projeto de transformação com uma visão global, tática e estratégica da realidade, algo só alcançado a partir de uma organização política.

Sem um organismo político que esteja inserido no contexto das lutas populares, fica muito difícil ultrapassar os limites das lutas apenas reivindicativas e imediatas para um projeto de ruptura. A consciência de classe oprimida e explorada precisa ser despertada dentro do seio da própria classe. À medida que se luta por algo mais imediato como um aumento salarial, mas se cria um espírito coletivo que permita o desenvolvimento de uma consciência de classe, que mostre que a totalidade das reivindicações necessárias para a vida das pessoas não são compatíveis com o sistema capitalista em que vivemos e que só a luta em conjunto de toda a classe pode nos trazer uma nova lógica de organizar a sociedade, desenvolve-se as condições objetivas para lutar por um programa máximo, para além das reivindicações imediatas.

É tarefa da militância da organização política catalisar esse processo. Sendo que a organização política não pode estar à frente dos movimentos populares. Ela deve estar inserida nesses espaços para ajudar ombro a ombro com seus companheiros de classe na construção do projeto de Poder Popular.

A classe, através de suas organizações de massa, levará a frente o projeto revolucionário de mudanças e a organização política estaria inserida nesse contexto, sendo organismo responsável por despertar a ideologia da classe, possibilitar a ela uma consistência teórica e disputar suas idéias na construção desse projeto, sempre por dentro. A atuação da organização deve ser norteada por esse sentido, pois, não podemos esperar que esse projeto apareça espontaneamente.

É através da organização que podemos observar o mundo a partir de uma teoria transformadora, estando ela devidamente inserida nas lutas do povo. A partir dessa interpretação da realidade traçamos um plano de intervenção, um plano que permita canalizar os esforços de construção do Poder Popular. Porém, temos a compreensão e a cautela, de que nem tudo depende somente dos esforços da militância e da mobilização da classe. Há uma série de fatores que são externos à nossa vontade e esforços, pois estão em relação direta com a conjuntura de cada época, do contexto singular em que a luta popular desenvolve-se.

Por isso nos reivindicamos de intenção revolucionária, visto que uma organização revolucionária não se auto-proclama, ela se faz num processo de acordo com as condições objetivas e subjetivas de cada época e no cumprimento das tarefas necessárias, mirando o objetivo final almejado: fim das classes sociais e do Estado, a igualdade e a liberdade. Para tal, agimos com os pés no chão, buscando estar cientes tanto dos limites mais objetivos de nosso tempo, quanto no trabalho de desenvolvimento do protagonismo e consciência de classe.

Acreditamos que o projeto de transformação social não se dá apenas em uma localidade, numa cidade ou até mesmo num país. Esse processo só pode ser levado a cabo em todas as suas mais amplas conseqüências se for internacional. Não precisamos, no entanto, esperarmos uma articulação internacional para podermos agir.

Temos a responsabilidade, primeiramente no chão em que pisamos e precisamos saber que esse trabalho não pode ser isolado, em algum momento deve fazer o diálogo com o processo macro. Esse tipo de atuação só pode ser conseguida se orientada por um projeto político de intenção revolucionária. Somos, por isso, internacionalistas, mas de um internacionalismo que pensa na construção do Poder Popular em cada canto que se espalha e se solidariza, que não parte de um centro diretor e conserva a autonomia necessária para a efetivação da política dos trabalhadores.

b. Prática política e método de organização de luta:

minoria ativa e protagonismo de classe

É fundamental termos bem claro a diferença entre o nível político e o nível social. Diferente de uma organização de massa, que tem uma estrutura de funcionamento balizada por um programa amplo que abarque no seu interior a maior parte dos setores da classe, uma organização política tem uma estrutura melhor definida orientada por um programa específico, algo que dê a unidade e força suficiente para balizar sua militância em seu importante papel.

Acreditamos em uma organização anarquista especifista e que se direcione para uma militância social. Nos organizamos em um nível político específico (o da organização anarquista, com programa político determinado) e que, de acordo com seu programa, coordena sua militância inserida nas lutas e organizações de massa (nível social).

A atuação social dos militantes de nossa organização é a razão dela existir e essa atuação se faz dentro das instâncias de organização de massa ou de base: sindicatos, entidades estudantis, movimentos de bairros, etc. Na medida em que consideramos local estratégico de atuação de nossa militância os diversos espaços criados pela classe, nós traçamos uma política de atuação para cada local de intervenção contínua de nossa militância. Essa concepção visa garantir nossa expressão política na disputa de nossas idéias. Elas não concebem o engessamento dos movimentos onde atuamos. Elas são disseminadas no seu interior e sua conseqüência primordial é a intenção de colaborar com determinado movimento em sua luta, sempre em sintonia com os ideais transformadores.

Não nos movemos pelo crescimento de nossa organização, nos movemos pelo engrandecimento da luta do povo e confiamos que o desenvolvimento dessa luta é quem propiciaria o crescimento de nossa organização, não como um fim, mas como uma das conseqüências. De nada adianta ter uma organização grande se toda essa grandeza não representa de fato uma mobilização das bases sociais e só representa demarcação de território e reprodução de práticas políticas que não condizem com um processo de ruptura.

Isso tudo implica em uma intervenção singular, pois sabemos que ao militarmos numa organização social ampla nós estamos disputando idéias, seja com grupos organizados ou não. Por mais que possamos algum dia ter a hegemonia em alguma entidade, ela nunca será vista como pertencente à organização política, nossas idéias não penetrarão nela por correia de transmissão, mas por convencimento.

Nossa prática política diferenciada, a forma de se dedicar às tarefas do dia a dia da organização e o esforço pela construção de um projeto coletivo, é nossa principal forma de propaganda e método de despertar mais pessoas para a luta. Não basta termos uma boa militância no seu local de atuação se seus esforços não são acompanhados pelos demais. De nada adianta estarmos na diretoria de determinado sindicato se isso não for conseqüência de uma mobilização pela base. Se a grande maioria de um movimento social não for protagonista de suas próprias lutas esse projeto não está com consistência e há muito ainda o que fazer.

Dessa maneira, nos organizamos como minoria ativa, que, orientada por um programa político, age socialmente. Nossa tarefa é colaborar no desenvolvimento dos ideais transformadores junto aos trabalhadores, que de certa forma já existem como potencialidade. Não queremos entregar um projeto pronto e esperar que as massas o sigam. Nossa intenção é colocar nossas idéias a partir de uma prática política que se orienta pelo protagonismo dos trabalhadores, construindo o projeto em conjunto.

c. Estrutura e funcionamento da organização especifista

Para funcionar de forma organizada e poder atuar positivamente nas instâncias sociais, nossa organização se estrutura por: unidade teórica, unidade de ação, responsabilidade coletiva e federalismo. Esses princípios organizativos são identificados no documento histórico da Plataforma de Organização, do grupo de exilados russos Dielo Trouda (Causa do Povo) em 1926. Também fazem parte do método e concepção de organização política iniciado por Bakunin.

A unidade teórica de uma organização é fundamental. É a forma particular de como enxergamos a vida, como enxergamos a realidade que nos cerca, que tipo de interpretação damos a tudo isso. Essa teoria está a serviço da luta de classes e evidentemente toma partido dos setores explorados. Na medida em que temos um modo particular de interpretar essa realidade construiremos as possibilidades de transformação de maneira consistente. Como a teoria tem compromisso com a luta de classes, ela é forjada na medida em que evolui o projeto de Poder Popular.

A teoria da organização é a teoria de todos os membros desta, o que não implica necessariamente na ausência de divergência secundárias e pontuais entre seus membros. Mas, para atuarmos com força e à altura de nossos ideais, temos que partir de uma interpretação única dessa realidade e defender um só projeto, caso contrário não estaríamos agindo como uma organização, mas como um conjunto de individualidades.

A unidade de ação garante a atuação da organização como um único bloco. Podemos ter uma mesma teoria que oriente as diferentes pessoas do grupo e, mesmo assim, termos diferentes táticas de ação. Atuaremos de acordo com a opinião da maioria, que será a opinião da organização. Após um processo de discussão coletiva, onde todos têm a mesma oportunidade de esboçar sua opinião, havendo divergências vota-se e se atuará de acordo com a maioria.

Isso se afasta de posturas dogmáticas ou autoritárias, na medida em que se entende que não estamos nos movimentos sociais para fazer deles mera expressão de nossa vontade, pois uma tática política geral, deve sempre ser posta em respeito e diálogo com as singularidades de cada espaço e na base de uma prática política que preza por uma ética militante.

A responsabilidade coletiva contribui na unidade da organização, pois não há espaço para desvios individualistas dentro de uma organização anarquista especifista. Cada membro tem a responsabilidade política pela organização, bem como a organização tem responsabilidade política por cada membro. Cada pessoa contribui para o projeto da organização e esse é fruto da discussão coletiva.

Agimos por federalismo, pois é o modelo ao qual consideramos ideal para o funcionamento da sociedade emancipada e justa. Ele não pode ser colocado em prática como modelo de funcionamento de maneira geral para sociedade nas características que ela possui hoje, porém é de extrema importância que em nossas organizações populares e em nossa própria organização política atuemos com o método federativo, não só por ser o método mais eficiente e coerente com nosso projeto, como também, por ser formador de militância e seu próprio exercício ser uma forma de propaganda revolucionária quando aplicado nas organizações de base/massa.

Federalismo deve significar respeito às decisões pela base, respeito às particularidades dos locais onde a organização atua, mas sem perder a unidade que une os diversos setores da organização. Deve entender também que à medida que a organização cresce e se complexifica, necessita de instâncias diferenciadas e um maior esforço para garantir que a delegação esteja respaldada com um acúmulo de discussão das instâncias de base. Em resumo, o modelo de organização federativa orienta-se pelo respeito às particularidades locais, baseado em uma unidade teórica e de ação.

Nossa organização parte do pré-suposto de que todos os seus membros têm que estar inseridos em algum espaço de militância social. Não nos dividimos no setor que pensa e no que executa. Todos têm que atuar socialmente e levar essas características para o seu local de militância. Estando em um sindicato terá que trabalhar como os outros trabalhadores para que sinta na pele o que os outros sentem, para entender a realidade vivenciando e assim colaborar de maneira mais eficiente no projeto de construção do Poder Popular.

Sempre haverá os que se dedicam com mais empenho à elaboração teórica, mesmo assim, deverão estar inseridos em algum espaço de militância. Da mesma forma os restantes dos membros farão obrigatoriamente parte de espaços de reflexão. Por mais que não tenham possibilidade de se tornarem “teóricos”, têm que fazer parte dos espaços de elaboração seja teorizando de maneira mais profunda, seja dando sua interpretação sobre os fatos que envolvem sua militância de maneira simplificada.

O afastamento da militância pode desenvolver uma categoria de dirigentes que ordenam para outros executarem, o que vai de encontro a um projeto autogestionário de uma nova sociedade. De maneira inversa, o militante que se ocupa somente das questões de sua militância tende a perder em seu horizonte o próprio papel da organização política anarquista na construção de um projeto de ruptura.

Portanto, todo militante deve atuar politicamente segundo o programa da organização e contribuir na construção do mesmo, deve participar da instância deliberativa da organização e dos espaços organizados por ela, deve estar inserido socialmente em alguma frente e colaborar em suas propagandas (organização e frente de luta), exercidas tanto na prática política realizada, quanto nas idéias difundidas.

Conjuntura alagoana

Cenários de conjuntura alagoana
Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares
Alagoas, Maio de 2008

A presente análise de conjuntura é um exercício de militância que nos habilita na busca por um melhor entendimento do chão em que pisamos e que pretendemos transformar. Para quem visa um projeto de organização política com intenção revolucionária a ser desenvolvido em harmonia com a construção do Poder Popular das organizações de base, trata-se de um dever de casa.

Com humildade e dedicação, ir cumprindo com nossos “deveres” cientes de nossas limitações é também nos possibilitar a conquistar inserção social pelas bases. E sabemos que é somente isto que nos permite tanto ter uma análise mais concreta e ampliada da realidade, quanto cumprir com nossas intenções.

Em busca de financiamentos, Alagoas está à venda

O caneco de Alagoas sempre de prontidão a espera de financiamento vindo de fora nunca foi novidade. Hoje, em tempos neoliberais intensos, presenciamos a negociação da dívida pública de Alagoas com o Governo Federal, firmando o ajuste fiscal em parceria com o Banco Mundial (Bird), associada à discussão das estratégias da Agência de Fomento de Alagoas (Afal) em “cooperação técnica” com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID).

Nos mesmos termos, está também a consultoria fornecida ao governo estadual pelo Movimento Brasil Competitivo, liderado por um dos empresários mais ricos do Brasil, Jorge Gerdau. Tem cumprido trabalho de já um ano, tendo ainda cerca de seis a cumprir. Sua atuação vai em concordância com as dos organismos internacionais, ou seja, “melhoria da competitividade das organizações privadas e da qualidade e produtividade das organizações públicas”.

Portanto, no que confere a gestão pública, vale a adoção de métodos e modelos de gestão ultra-liberal. Como se sabe, o que está em jogo é o enquadramento de Alagoas dentro de padrões e necessidades do jogo do capital. Nosso pequeno chão de terra, ainda que maltratado por séculos e que pouco acrescenta no Produto Interno Bruto (PIB) do país, não deixa de estar dentro das possibilidades de ganho por parte de investidores em vários ramos. Os recursos e paisagens naturais viram os atrativos e a sua privatização o objetivo. É nesse sentido que os citados organismos atuam, descobrindo as “potencialidades econômicas” de Alagoas.

Significativo é a área de turismo e que sempre teve sua parcela representativa na economia alagoana. A Agência Espanhola tem fornecido suporte para formação de planos de ação na área, no discurso de gerar emprego e renda. O que se assiste é a presença cada vez maior na área de: hotéis, bares e restaurantes de empresários europeus; especialmente presentes na área litorânea do estado, onde na esteira corre a especulação imobiliária e a mafiosa indústria da construção civil.

E não poderia deixar de ser atrativo para o capital, pois, é o dinheiro público a financiar infra-estrutura para usufruto do setor privado, nacional e internacional. Aqui, o dinheiro do PAC do Governo Federal, também cumpre papel catalizador no processo. O envolvimento e a participação da população local, como as que estão vinculadas ao artesanato e a pesca, atua tão somente como mão-de-obra (barata) ou agente econômico secundário.

Outro destaque fica por conta do anúncio da exploração de minério na cidade de Craíbas, região agreste, por parte da mineradora Vale Verde (filial da canadense Aura Gold Mineração). O governo de Téo Vilela (PSDB) fala de investimento da mineradora na ordem de R$ 400 milhões, com faturamento anual de R$ 200 milhões e começando a operar até início de 2011. A fase é de conclusão de estudos a respeito da produtividade do solo.

Na questão do impacto sócio-ambiental na região, o governo se comprometeu a não medir esforços contra o que eles chamam de “entraves burocráticos” e deve promover toda a estrutura de água e energia necessária para tal empreendimento (adutor e subestação de energia). A sondagem do terreno, feita já há mais de um ano pela mineradora, tem sido feita a sete chaves. O projeto teria sido comprado da então Vale do Rio Doce, que na década de 1980 constatou a presença na região de cobre, ferro e até ouro, mas nunca levou adiante. Quanto à população local, o único papel delegado é o de expectadores na promessa de 1500 postos de trabalho.

O agronegócio e os “heróis” da cana:
mais destruição de recursos naturais, mais concentração de riqueza

Quanto ao setor canavieiro, este enfrenta desde o fim do ano passado inusitadas greves por parte de trabalhadores do corte de cana e agora também uma ação do Ministério Público que tem autuado dezenas de usinas constatando o que é de conhecimento de todos: a presença de trabalho escravo.

No terreno mais econômico, a cana também pode não ter o mesmo peso no PIB alagoano como o de outros tempos, o que é resultado de uma diversificação na economia alagoana. Com dados de 2005, a capital Maceió concentra quase 50% onde, ainda que exista presença também na produção deste PIB do setor sucroalcooleiro, possui uma economia mais dinâmica que abrange setor químico, indústria civil e comércio e serviços. No entanto, em uma economia bastante voltada para as exportações, produtos relacionados ao setor permanecem sendo esmagadora maioria em suas estatísticas. Aliás, aqui cabe a nota que o setor domina o porto de Maceió e está a discutir um Plano Diretor para o mesmo com o governo estadual.

Em relação a ocupação de terra, o processo passado de reestruturação produtiva no setor sucroalcooleiro também o colocou ocupando uma área de terra menor que a agropecuária, mas sem perder sua produção. Isso muito devido a programas de melhoramento genético da cana, possibilitada a partir de parcerias como a da Universidade Federal de Alagoas, referência nacional no quesito.

Neste momento, onde diversos usineiros e grandes fazendeiros estão sendo notificados judicialmente, nota-se a maior incidência de outros setores na economia alagoana. Embora a concentração de terra pelo setor apareça menor em relação a outros (pecuária), não significa perda de espaço político-ideológico, nem muito menos uma mudança no quadro econômico do estado a se “emancipar” dos canaviais.

Na verdade, na questão da área ocupada de terra, o setor afirma que a agropecuária ocupa o dobro com área de pasto e que, pela parte dos usineiros, existe a preocupação em manter reservas de mata. A verdade é que as áreas de mata mantidas pelas usinas são irrisórias ao estrago que já fizeram ao longo de anos e que ainda fazem. Além do que, sabe-se que tal questão é feita na medida em que garante retorno financeiro, seja pela modalidade empresarial de “marketing social” até pelo fato de exigências de mercado estrangeiro.

Vale salientar que no fim de abril do corrente ano, o governo estadual lançou o “Programa de Reflorestamento e Desenvolvimento Sustentável em Alagoas”. Contando com a participação do polonês Ignacy Sachs, um dos formuladores do conceito de “desenvolvimento sustentável”, discutiu-se “modelos de negócios florestais” e “alternativas de culturas florestais”, tal como a inserção da agricultura familiar no processo e produção de energia (biocombustíveis). O parâmetro da discussão de “reflorestamento” é o mesmo que em outros estados, os quais têm exemplos, em que colocam a plantação de eucalipto (o “deserto verde”), como modelo de proteção ambiental e reflorestameto.

O fato é que o “desenvolvimento sustentável” em Alagoas é inseparável do contexto nacional da política de produção de biodisel. Lembrando que o presidente Lula, no ano passado, chamou os usineiros de heróis nacionais, pelo papel a desempenhar nessa política. Para estes “heróis”, que sempre viveram de concessões e benefícios do Estado, o momento não pode ser ruim.

Em Alagoas, o programa do governo estadual referente ao incentivo ao biodisel é ponta de lança em sua estratégia econômica e tem sido levado adiante como benéfico, inclusive, à agricultura familiar e como forma de fazer reforma agrária. O governo têm colocado como política de “incentivo” a agricultura familiar, mesmo em assentamentos, a distribuição de sementes de mamona, uma das matérias-primas dos biocombustíveis. A Secretaria de Agricultura e o Iteral (Instituto de Reforma Agrária de Alagoas) distribuiu, em março, sementes a produtores de 33 municípios de áreas tidas como ideais para o seu cultivo. Aqui temos tanto o fato de submetê-los a lógica do agronegócio como, evidentemente, os colocarem em agentes auxiliares de um processo de produção de energia finalizado nas usinas.

Cabe destacar que a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) foi reativada recentemente, em reunião realizada em Maceió com a participação de Lula. Este, em seu discurso, deixou claro que o principal papel do órgão é a produtividade agrícola e o biodisel, sendo o “passaporte nordestino” para a entrada em um “novo ciclo de desenvolvimento mundial”.

Da conclusão a se tirar é que a agroindústria da cana permanece a responder com preponderância no estado, sem excluir o avanço da pecuária, também no contexto de agronegócio e de outras atividades. Está inclusive bem posicionada nas esferas políticas. Basta dizer que o usineiro e senador João Tenório (PSDB) é presidente da Subcomissão dos Biocombustíveis do Senado Federal e integrante da Comissão Interamericana de Etanol, essa, voltada para o fortalecimento da parceria entre Brasil e EUA na produção de etanol. Ou seja, o poder de barganha dos usineiros os mantêm em posição confortável. Permite a eles continuar a ganhar em cima de concessões, benefícios e destruindo os recursos naturais e a biodiversidade, levando de quebra a fama de protetores ambientais e “parceiros de desenvolvimento” no apoio técnico a outras áreas e com projetinhos sociais aqui e acolá.

Não à toa que em ocasião de uma das primeiras reuniões do setor com o governador Teotônio Vilela, no ano passado, o usineiro Jorge Toledo soltou a pérola: “Alagoas não pode fazer mais nada pela cana. A cana-de-açúcar pode fazer por Alagoas. Pode impulsionar outras culturas, outros projetos.”. E assim têm sido.

Governo é governo:
Territórios da Cidadania e PAC alimentam as eleições

Não importa se o governo central é PT, se o estadual é PSDB e o municipal outro qualquer. Governo é governo, e aquele que está a sua frente sabe que o que está em jogo é sua preservação e reprodução, antes de qualquer projeto político-partidário, este, sempre negociável.

Dois programas do governo federal merecem destaque, pois além de manter em pauta a intensificação e a expansão de um modelo econômico concentrador de riqueza para os de cima, vem em aliança a uma articulação política, a uma determinada maneira de conceber a política pública, que desorganiza os de baixo com discurso convidativo de inclusão social. Em uma terra de uma acentuada cultura de clientelismo, tais formas de articular e conceber políticas públicas têm grande serventia na reprodução de grupos e elites políticas.

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) já teve R$ 2 bilhões aplicados em Alagoas e a meta é de R$ 3 bilhões nos próximos três anos. Especialmente centrado na área de infa-estrutura, as cidades de Rio Largo, Palmeira dos Índios, Arapiraca e a capital Maceió são os principais alvos. Além da obra do Canal do Sertão, cobrindo a área de Arapiraca à Delmiro Gouveia e que é a maior obra hídrica do PAC no Nordeste.

Já o “Territórios da Cidadania”, atinge regiões com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo e o objetivo anunciado é levar “cidadania” às camadas marginalizadas e incentivo à atividades econômicas. Em Alagoas foram definidos três territórios, por critérios de identidade econômica e cultural: Alto Sertão, o Agreste e o Litoral Norte. Seus articuladores juram de pés juntos que vão “erradicar a pobreza no meio rural”.

Percebe-se que os dois programas atuam em dois campos de ação distintos, mas que, naturalmente, estão articulados dentro de um projeto mais amplo. No PAC estão as grandes obras, financiadas por um programa que tem como ponto de apoio o de sempre: arrocho salarial, o corte em despesas de previdência, a flexibilização de leis trabalhistas e ambientais, etc. São obras que possibilitam a construção de infra-estrutura necessária para que empresários e grupos econômicos ganhem em competividade, em lucros.

Cabe também assinalar que o pacote vem também acompanhando da farra de empreiteiras. Não custa mencionar o quanto as grandes licitações viram campos para troca de favores políticos e econômicos entre aqueles que pagam e aqueles que legislam e executam. O exemplo é próximo e recente: o primeiro Secretário de Infra-estrutura do governo de Téo Vilela, o Sr. Adeílson Bezerra, foi pego em 2007 metido nas falcatruas de licitações com a construtora Gautama, inclusive de obras vinculadas ao PAC. Agora, o MPF denunciou o próprio Teotônio.

Pelo lado do programa Territórios da Cidadania, este possui o caráter particular de aplicar os projetos do capital e das elites locais em diálogo com uma maquiagem social, minando os movimentos sociais populares em sua base, os cooptando para dentro do Estado e para projetos agrícolas das elites. Isso porque não está fora em um milímetro sequer de um modelo econômico baseado no agronegócio e no latifúndio. O alvo para atingir regiões mais marginalizadas socialmente e economicamente, não está em contradição com a preservação do latifúndio.

PAC e Territórios da Cidadania, além de alinharem campo e cidade em um mesmo projeto, tende a se reproduzirem através de uma política viciada na relação público/privado, valendo-se do estabelecimento de uma relação clientelista, e onde tudo vira, no mínimo, dividendo eleitoral. Para as prefeituras alagoanas, verdadeiros espaços de enriquecimento rápido e fácil, são programas certeiros para reproduzir e ampliar o domínio político do grupo ou político em questão.

Daí, as verbas destinadas com o PAC e com o programa Territórios da Cidadania viram prato cheio. Apimentando o ano de eleições municipais, seus lançamentos, anúncios e inaugurações são verdadeiras fábricas de palanques para todas as cores, gostos e siglas. Está todo mundo de olho grande, pois é muita grana e são muitas as oportunidades de negócios para os de cima.

A corrupção institucionalizada e os profissionais da política

Na arena do joguete político, seus profissionais têm passado por desgastes e uma quebra de braço entre si e com o poder judiciário. Este último afastou a mesa diretora da Assembléia Legislativa do Estado (ALE), uma decisão inédita, mas estes não perderam sua influência e força na disputa entre blocos e grupos políticos, provocando denúncias e ameaças para todos os lados. São conseqüências da Operação Taturana da Polícia Federal deflagrada no fim de 2007 e que revelou um esquema que desviou da ALE cerca de R$ 300 milhões em cinco anos. O então presidente da ALE, Antônio Albuquerque (ex-DEM), logo foi posto no lugar de maestro do esquema.

Já passaram de dez o número de deputados indiciados em variados delitos, e de cem o de envolvidos em geral. O esquema tem apoio de dentro, inclusive, do Tribunal de Contas e era financiado por empréstimos bancários concedidos aos deputados, em nome da ALE, pelo Sudameris, Banco Rural e o poderoso Bradesco. Dito pela própria PF, a conivência dos bancos foram fundamentais para o esquema. No caso do Bradesco, a quase ausência da pauta na grande mídia nacional, parece encontrar razão na medida em que ele é um dos maiores anunciadores do país.

Voltando aos indiciados, recentemente foi a vez de a bolha estourar no prefeito de Maceió Cícero Almeida (PP) e no deputado Paulão (PT), este, da bancada de oposição e que vinha defendendo a cassação de mandato dos envolvidos. Foram indiciados em quatro processos, entre eles lavagem de dinheiro. Cícero Almeida, de elevada popularidade em Maceió, tomou empréstimo de R$ 120 mil, mas com ares de “inocência” alegou que o dinheiro era para o atual deputado federal Francisco Tenório (então vice-presidente da ALE) financiar a sua fábrica de leite. Já Paulão, presidente estadual do PT, sacou na faixa de R$ 220 mil.

O que se tem revelado é o quão enraizado é a corrupção, um elemento estruturante do próprio regime político-econômico e feito das maneiras mais escandalosas. É uma institucionalização da corrupção que naturaliza a tomada de verba pública para fins privados e na reprodução do poder. Essa institucionalização encontra uma das suas representações, na lei que institui cargos de Secretário Parlamentar associada com a da GAP (Gratificação de Apoio Parlamentar).

Só essas duas leis garantem mais de R$ 100 mil mensais para cada deputado e tudo, segundo eles mesmos, nos conformes da lei. Dinheiro que garante não somente o enriquecimento pessoal e familiar (nomeando funcionários fantasmas e parentes), como também o próprio financiamento eleitoral. Quanto a esta última, o deputado Ricardo Nezinho (PTdoB), até então não mencionado no esquema das taturanas, vira exemplo quando comprou um trio elétrico com esta verba. Não é à toa que os que assumiram o lugar dos deputados afastados, não titubearam e logo trataram de exigir os seus “direitos”.

Nesse sentido, a questão da verba da ALE, seu duodécimo, virou o centro do debate. Proporcionalmente uma das mais custosas do Brasil, não custa lembrar que na época do Governo Lessa (PSB/PDT) o duodécimo foi inchado. Faz parte do receituário de “governabilidade” e é justamente durante este governo que este esquema se iniciou.

Já o Governo Vilela, após os acontecidos, se limitou a alertar por meio da Seplan que o duodécimo esteja compatível com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O detalhe é que Vilela não se lembrou disso quando em seus primeiros dias de governo cortou reajustes de servidores elegendo, especialmente, os professores da rede pública como, na certa, os maiores pesos nas finanças do Estado. Na verdade, o governador tucano ficou na saia justa, visto que Antônio Albuquerque foi um de seus principais cabo eleitorais. Não se meteu publicamente no mérito das discussões que envolvem a Polícia Federal, o que por si só já é uma ajuda aos “taturânicos”, como estão conhecidos.

Na ausência dos deputados afastados, a eleição da mesa diretora elegeu Fernando Toledo (PSDB) e Gilvan Barros (PMN) para os principais cargos, que representa uma demonstração de força política daqueles afastados, pois é a garantia de que as coisas possam caminhar segundo a música ditada por eles. Isso nenhum grande meio de comunicação ousou negar.

Por fim, os bastidores da política profissional alagoana transcende seu território e o indiciamento do próprio presidente estadual do PT abre mais possibilidades para que deixem levar (e olhe lá) somente o anel, mas deixem os dedos, todos eles.

E a organização dos de baixo?

Alagoas tem vivido desde os primeiros dias de 2007 diversas greves de servidores públicos a atingir as áreas de educação, saúde e segurança pública. Junto a isso, a luta pela terra que sempre está à tona, tem agora o adicional de uma certa mobilização dos trabalhadores do corte de cana. Por fim, torna-se público o esquema de corrupção na ALE, envolvendo velhos conhecidos da elite e da pistolagem.

Tomando esses fatos, ao que parece é existir uma grande ebulição, abrindo campo para ser transformada, pelos movimentos e entidades sociais, em um momento de acúmulo de forças a se refletir em aumento do seu poder de pressão e organização, jogando de um lado tanto no desgaste da elite política e suas instituições, quanto na urgência de suas pautas reivindicativas. Não é exatamente isso que ocorre.

No caso do escândalo da Assembléia, a movimentação em torno da questão se deu na formação do MSCC (Movimento Social Contra a Corrupção e a Criminalidade). Reunindo, inicialmente, uma gama de sindicatos, entidades e movimentos populares, o MSCC logo tratou de optar pela ação jurídica e parlamentar, ao invés da de rua. Agora com o indiciamento do presidente estadual do PT, a coisa desanda de vez. A pauta que iniciou na cassação dos envolvidos, antes mesmo deste fato já se centrou para a redução do duodécimo e assim caminha pelo ralo a possibilidade de aglutinar forças sociais para fazer enfrentamento com velhas oligarquias e velhas práticas políticas.

Em relação às greves, o fato de estarmos lidando com um governo tucano não deixa de ser um elemento detonador, na medida em que vários sindicatos e os movimentos sociais de maneira geral estão ligados ao PT. Sabemos que os dois partidos polarizam o cenário político nacional hoje, mesmo se tratando de projetos equivalentes. Se o governo estadual fosse petista, a política seria a mesma em seu mais fundamental e muitos não moveriam uma palha para pôr gente na rua.

De toda forma, as questões referentes ao servidor público se arrastam por anos, em um estado que “vive a sobreviver” de verba federal. Assim, a memória do 17 de julho de 1997, quando o então governador Divaldo Suruagy renunciava após uma situação de vários meses de salários atrasados e mobilização dos setores atingidos, parece atuar no imaginário de todos aqueles que vão lutar por seus direitos. No caso, não se trata de salários atrasados, mas de reajustes.

Sendo que, se a discussão fosse apenas na lógica de quem está ou não está à frente de tal sindicato ou de tal movimento, o cenário seria mais fácil, tanto para fazermos uma análise mais sólida e que apresente “respostas seguras” quanto para resolver a própria questão central: a organização da luta dos de baixo. Porém, para entendermos a situação da luta de classes em Alagoas, é preciso atentar para o caráter das políticas impostas pelo inimigo de classe, a incidência e impacto delas no conjunto dos trabalhadores, tal como o nível de organização autônoma destes.

Para isto, considerando a realidade alagoana, atentamos para o ponto do caráter de cooptação do Estado via programas como Territórios da Cidadania e as políticas pró-biodisel com “inclusão produtiva” dos pequenos agricultores já mencionadas neste documento. Acrescentamos neste bolo o bolsa-família, pois é bastante representativo para a discussão.

As estatísticas acusam que 350 mil famílias alagoanas são assistidas pelo bolsa-família, o que é cerca de metade da população alagoana. Há quem defenda e diga que, ainda que seja uma renda baixa fornecida, considerando a realidade de extrema pobreza dos alagoanos, faz uma diferença importante (que em outras regiões do país pode não existir). Comparando com o que se ganha no corte de cana, seriam R$ 75 milhões por ano deste, contra R$ 300 milhões do bolsa-família nas mãos dos trabalhadores. A comparação é por baixo e sem desconsiderar a necessidade de brigar por medidas que possibilitem melhores condições de vida, ela não passa de puro “economês”.

Tomando também o aspecto político-ideológico, fica claro o quanto o programa atua amarrando a classe e indo bem nas bases dos movimentos populares, em especial os do campo. A questão não está em apelidar ou não o bolsa-família de “bolsa-esmola”. O principal não está no valor fornecido, e sim na sua atuação em desorganizar e desestruturar a ação autônoma da classe, pois, assim como as demais políticas citadas, ele vai lá nas vilas, periferias, em comunidades quilombolas e nos lugares mais carentes. Justo lá, onde boa parte da esquerda tem medo de pisar e ainda “justifica” teoricamente.

Na falta de referências nascidas da experiência de luta, na falta da construção ideológica de um povo que pisa o chão do Quilombo dos Palmares e dos Caetés, como na falta da construção de práticas e métodos que dêem autonomia e protagonismo, o clientelismo, os oportunistas de plantão, o Estado e a direita, deitam e rolam.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Socialismo Libertário, nº 17


Disponível a edição do trimestre abril-junho do Socialismo Libertário, jornal co-editado pelos grupos do FAO.

Leia nesta Edição:

Mural Libertário

Urgência das ruas. Romper o cerco.
Teatro de Combate, Teatro Libertário e Popular.
VI ELAOPA.

Editorial

Discurso do desenvolvimento e situação ambiental no Brasil

ESPECIAL 1° de Maio

Alberto R. Parsons

Situação Nacional

Reestruturação produtiva, flexibilização e a “nova” ofensiva do capital.
O caso da GM. Trabalhadores em luta!
Racismo, tortura e a superpopulação dos presídios no Brasil de Lula

Regionais

Mato Grosso: violência e luta.
8 de março. As mulheres trabalhadoras foram pelear futuro.
Territórios da cidadania. Oportunidade para os de baixo ou oportunismo para os de cima.

Internacional

Venezuela. Não queremos que nos governem, queremos governar.

Teoria & História

40 anos do maio de 68.
Um falso dilema: espontaneidade
versus organização