quinta-feira, 15 de maio de 2008

[CAZP] Declaração de Princípios

DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS

Coletivo Anarquista Zumbi dos Palmares

Abril, 2008

-I-

Seção teórico-ideológica

a. Uma histórica luta entre oprimidos e opressores

A história da humanidade sempre foi a história de sua luta pela vida. É sob esta base real e primária da vida que a humanidade tal como conhecemos, se constituiu, desenvolvendo inclusive, a ciência e as artes. No entanto, essa luta sempre tomou formas diferentes ao longo de sua história e entendemos, tal como entendeu Nestor Makhno e seus camaradas, que “não há uma humanidade e sim uma humanidade de classes”.

A organização social da vida é um processo histórico especialmente fundamentado a partir da relação que homens e mulheres estabelecem com esta base primeira, a luta pela vida, tal como entre si. Um processo histórico, pois não se dá de maneira repentina, nem mesmo sem que carregue consigo marcas e acúmulo desta caminhada. Deste processo, determinam-se as formas de organização e reprodução da vida social em seus amplos aspectos (econômicos, políticos, culturais). E é a partir da análise deste processo que podemos identificar uma histórica luta entre oprimidos e opressores, dois pólos de luta que se enfrentam em diversos cenários do palco da história, um ansiando pela libertação e outro pela dominação e exploração.

Mas, se o exame da história da humanidade nos leva a constatar uma predominante presença de exploração e dominação entre homens e mulheres, como pensar ser possível pôr fim a elas? Enfatizava Bakunin que na vida humana não existem fatos consumados, sem que não sejam eles próprios, produtos da vida natural a qual também estamos inseridos, tal como as necessidades fisiológicas vitais, ou produtos da vida histórico-social. A primeira questão está aquém de nossas vontades sendo a “revolta” contra elas tão inútil quanto absurda. Mas aquilo que é produto da vida histórico-social não o é sem que não possa ser transformado radicalmente.

Nesse campo da vida, naquilo que é produto histórico-social, está localizado a exploração do trabalho humano e a dominação entre seus semelhantes. Aqui a revolta não só é possível, como sempre foi presente. Se a história da humanidade tem se apresentado como uma história atormentada, fruto de uma luta, a princípio entre iguais, mas que se constituem em posições antagônicas de interesses distintos, gerando exploração e dominação de uma maioria por uma minoria, não tem sido sem que não exista resistência e revolta.

Em razão disto, fazemos nossa opção pelos oprimidos contra os opressores, e constatamos a necessidade de opor a força e a violência dos opressores, com a força e a violência dos oprimidos em favor de fazer da história da humanidade não mais um tormento, mas o lugar em que esta realize a plenitude de suas potencialidades. A condição para isto é o objetivo histórico dos oprimidos: o fim da exploração e dominação na humanidade. Só a partir daí que podemos, agora sim, falar de uma única humanidade, a viver em solidariedade e a coincidir os interesses gerais com os particulares.

Mas há de se perguntar: por que até hoje isso não se realizou? A busca dessa resposta é, antes de tudo, a afirmação do já exposto. Estamos falando de um processo histórico, onde as condições materiais, as limitações e desenvolvimentos do conhecimento humano sobre si e sobre o mundo natural e social que o rodeia, as ideologias sedimentadas, tal como a intervenção de diversos agentes sociais e políticos, atuam na determinação desse processo.

Dos tempos em que basicamente se vivia em pequenos grupos, da pesca e da caça, de uma agricultura rudimentar, de esferas de organização e normatização da sociedade simples e sem maiores mecanismos de coesão social além da tradição e da força, para a sociedade burguesa de hoje, presente e influente em cada canto do mundo, de elevados padrões produtivos, tecnológicos e de uma complexa organização político-jurídica, ideológica e militar, daqueles tempos aos de hoje, o sangue dos que se rebelaram contra os que lhe oprimiam não foi em vão e nos inspiram.

Ensinou Bakunin que olhar e estudar o passado não pode ter outro sentido senão “para constar o que fomos e o que não devemos mais ser, o que acreditamos e pensamos, e o que não devemos mais acreditar nem pensar, o que fizemos e o que nunca mais deveremos fazer”. Trata-se de encarar a história não só como um legado, mas também como um aprendizado. O maior deles é que, da mesma maneira em que a maioria da humanidade não está fadada a viver eternamente sob o manto da ignorância, exploração e opressão, pois isso não é algo natural ou fora do domínio humano, é preciso encarar que o socialismo é uma possibilidade, não uma fatalidade.

Deste aprendizado acumulado da luta histórica entre oprimidos e opressores, enquanto militantes que assumem como compromisso a causa da emancipação social, extraímos práticas e análises no proveito do objetivo histórico dos oprimidos. Objetivo histórico, pois estes são os que com seu sangue e suor construíram e constroem a riqueza da humanidade. E no sentido deste horizonte de liberdade, inspiram o que de melhor se produz na ciência social e nas artes.

Trazemos conosco, enquanto espírito de rebeldia, a resistência ainda presente dos povos originários da América Latina e dos quilombolas, tal como dos combatentes contemporâneos da liberdade, operários e camponeses pobres, trabalhadores e oprimidos presentes em vilas e periferias, no batente e na enxada, lutando por terra, trabalho, moradia, saúde e educação. Nos oprimidos colocamos todas as nossas apostas e nossa luta deve ser para que a humanidade possa reverter o seu sentido histórico, e passe a caminhar no sentido da liberdade e da igualdade.

b. Os inimigos de sempre e os mecanismos de hoje

Os nossos inimigos nem sempre se apresentaram da mesma forma, nem mesmo se utilizaram dos mesmos mecanismos, ou então, poderíamos dizer que se utilizaram de um mesmo mecanismo primário de exploração do trabalho e de dominação sob variadas maneiras. São nossos inimigos – e assim os identificamos ao longo dos tempos, mesmo que sob nomes e formas diferentes – porque promoveram a exploração, a opressão e delas, tiraram proveito.

Os nossos inimigos já se chamaram de aristocratas, de nobres, de senhores, entre outros. Seu sistema de dominação já foi denominado como feudalismo, regime escravista, entre outras variantes exploradoras. Os inimigos de hoje atendem pelo nome de burguesia e o sistema por ela organizado, capitalismo. Seus mecanismos, em constante operação e cada vez mais articulados com uma rede de meios e instrumentos de dominação, são identificados no Capital e no Estado. É a exploração econômica e a dominação sócio-política que se fundem e se configuram para benefício de uma minoria.

O Estado e o Capital: o poder que vem dos ricos e para os ricos

“O que são a propriedade e o capital em sua forma contemporânea? Para o capitalista e o proprietário, significa o poder e o direito, garantidos pelo Estado, de viver sem trabalhar. E posto que nem a propriedade, nem o capital nada produzem sem estarem fertilizados pelo trabalho, isto significa poder e direito para viver explorando o trabalho de outro. Direito a explorar o trabalho de quem não tem nem propriedade nem capital e, portanto, se encontram forçados a vender sua força produtiva aos afortunados proprietários” (Bakunin)

O sistema capitalista é fundado sob a base de um regime de propriedade privada dos meios de produção (terra, instrumentos de trabalho, etc). Segundo a ideologia que o sustenta, os trabalhadores são livres. No entanto, pensamos com Bakunin que “o direito à liberdade, sem os meios para realizá-la, é apenas uma quimera”. Os trabalhadores, roubados dos meios concretos para que possam garantir sua sobrevivência, se veêm obrigados a vender sua força de trabalho para a classe dominante. Esta é a condição e o fermento para a manutenção de um sistema que garante a apropriação de lucros à burguesia e que divide seus prejuízos com os trabalhadores, que pagam ainda a conta mais alta. Para esta operação os capitalistas sempre encontraram no Estado o apoio político-militar e também financeiro, necessário para prosseguir com seus projetos.

As formas de acumulação de riqueza e exploração do trabalho de outrora e as do capitalismo do século XXI, mudaram bastante, atravessando vários períodos e fases: já foi mercantilista, colonialista, passando a monopolista e atualmente imperialista e ultra-monopolista. Mas a sua orientação – ou seja, também na gênese do capitalismo – permaneceu sempre a mesma. A centralização econômica e política caracteriza o seu modelo e estrutura a sociedade. No decorrer desse processo que concentra riqueza e distribui miséria, um complexo sistema de dominação evoluiu, tanto em seus meios materiais e repressivos, quanto científicos e ideológicos.

Ocorre que a ligação existente entre as esferas econômicas e políticas são estreitas e difíceis de delimitar território. Por isso, quem controla os meios de produção, as coisas, exerce controle também sob os indivíduos. O Estado vai atuar não somente como elemento de contenção entre Capital e Trabalho – ou, entre a burguesia e os trabalhadores – mas também como um agente econômico ativo importante, que organiza e administra sob o leme da classe a qual representa: a burguesia e suas variadas frações. A centralização é a tendência inevitável a se realizar pelo Capital e pelo Estado. É por isso, que no desenvolvimento da dominação burguesa, a concentração de empresas ou grupos empresariais, banqueiros etc., vem junto com o próprio estreitamento dos mecanismos decisórios.

Na mesma medida em que nos deparamos com uma realidade mundial de concentração de riqueza em poucos países, no Brasil também presenciamos uma exorbitante concentração desta na região Sudeste/Sul do país, em especial São Paulo. Os recursos a serem destinados e a organizar e financiar essas disparidades têm na centralização dos poderes a sua realização e reprodução. Por isso, identificamos no Estado e no Capital o poder que vem dos ricos e para os ricos.

A política e a ideologia burguesa: dominar e fragmentar

Clássicos do anarquismo, como Bakunin e Malatesta, afirmavam que a situação econômica era a situação real. Por isso, as formalidades jurídicas viram ficção, pois o trabalhador não está em iguais condições que o seu patrão. Isso se reflete no limitado acesso à educação, cultura e saúde. Assim como, uma dominação ideológica, potencializada por diversos instrumentos utilizados, desde a educação formal, a cultura propagada ou apropriada pela elite, passando pela grande mídia.

Essas leis sendo ficções, o cumprimento delas tende a ser executado somente no benefício das elites, que as elaboram e sancionam. As conquistas que são transcritas na forma de lei, foram resultados de mobilizações e lutas para tal, assim, o respeito a elas não é a lei sozinha que a faz, e sim, a permanência da luta e a construção ideológica que coíbe práticas contrárias.

Um dos mecanismos que mais põe às claras a política e a ideologia burguesa está nas eleições para os cargos do poder executivo e legislativo do Estado. O chamado sufrágio universal (as eleições parlamentares) ainda que seja contemporâneo à ascensão da burguesia à classe dominante, a partir de meados do século XVI, nem sempre foi o escolhido por ela. A presença de ditaduras e golpes sempre marcou a dominação burguesa, percorrendo desde a França de Bonaparte às ditaduras latino-americanas por volta da década de 70 do século passado. Daí, associar liberalismo com Estado democrático pode virar um grande engodo.

O chamado regime democrático, em tese, garante a liberdade de organização e imprensa, possibilita uma elevação à vida pública o que permite maior tranquilidade na organização e mobilização dos trabalhadores. Assim, ele é certamente preferível a um regime ditatorial. No entanto, não faz parte de nossa teoria semear enquanto política dos trabalhadores a política que é na verdade burguesa, ancorada naquilo que os anarquistas tradicionalmente classificaram como a “ilusão do sufrágio universal”, sempre se opondo a cair no jogo parlamentar.

Cabe o exemplo de Proudhon, que chegou a assumir cadeira legislativa na França (1848), mas constatou que nesta condição, estava cada vez mais distante do povo e do que acontecia nas ruas. Desde então, lutas foram travadas e como orientação ideológica determinou-se a centralização dos esforços e energias na mobilização direta dos trabalhadores, a partir dos seus próprios espaços (trabalho, moradia, etc.).

O que está no centro da discussão é a construção de uma política própria dos trabalhadores, que está diretamente vinculada à percepção e confiança em sua força, na construção de sujeitos históricos ativos, conscientes e convictos do seu papel. Confiança esta, que só pode ser ganha a partir do momento em que estes trabalhadores não só lutam, mas também decidem, exercem protagonismo. E o Estado só pode, e assim sempre o fez, mesmo quando dirigido por ex-trabalhadores – que ao mudarem de posição, mudam de perspectiva – continuar a representar os interesses da burguesia, no sentido de confundir, dispersar e fragmentar a força dos trabalhadores.

Desse modo, a política e a ideologia burguesa, seja sob qual manto busque refúgio (ditadura ou democracia), tem como objetivo dispersar a força do povo, que a tem justamente por ser povo, por não viver de parasitismo. A burguesia usa também da dominação para fragmentar, seja quando é feito a base do cassetete e pau de arara, seja quando articula sob um verniz de legalidade. E quando foi preciso, ela nunca pestanejou em romper com esta legalidade. Portanto, não há fim da exploração econômica, sem o fim da dominação político-ideológica.

Concluímos assim, que, se queremos construir outra sociedade, onde não existam mais classes sociais, pois todos contribuiriam na construção da riqueza da sociedade e desfrutariam dela em igual medida, entendemos que esta mudança não é mecânica, nem poderia ser, pois se trata de pessoas que vibram, sentem, choram, pensam e agem numa civilização construída não somente na base da exploração, mas também produzindo uma dominação branca, machista e repressora da opção sexual. Ou seja, pessoas de diversos lugares, com suas singularidades e formas de externá-las.

Portanto, entendemos que contribuir para desencadear um processo revolucionário é dar a força do povo, ao próprio povo. Possibilitar aos trabalhadores e trabalhadoras que eles/as, em cada canto, possam ter voz e efetivamente construam seu destino, com sotaque e maneiras diferentes de construir seu poder: o Poder Popular, que nasce do povo e é exercido por ele.

c. A nossa base ideológica – o porquê do anarquismo

Diante de uma realidade de miséria e exploração, o socialismo surgiu enquanto crítica a sociedade capitalista. O anarquismo se localiza enquanto uma corrente de pensamento e tradição de luta socialista, se inserindo enquanto uma variante das idéias e práticas construídas nesse campo. Ao longo de sua história, firmou determinados preceitos ideológicos que lhe deu um estilo e traçava metas. O anarquismo surge, então, como proposta de luta (articulando preceitos político-organizativos e teórico-ideológicos) em favor do interesse histórico dos trabalhadores.

No meio socialista, foram construídas ao longo da história, incorporando experiências, suas variantes que pensam a transformação da sociedade, mas sem romper com o que chamamos de ideologia estatista. Uma delas, que tomou uma perspectiva reformista e que tende a co-existir em harmonia com a divisão da sociedade em classes, ficou historicamente conhecida como social-democracia.

A principal referência histórica social-democrata, está no período conhecido como Estado de Bem-estar Social, no pós-Segunda Guerra Mundial. Neste período, países europeus vivenciaram relativos ganhos e concessões por parte do Estado, permitindo relativa melhoria de vida da classe trabalhadora. Porém, isso só foi possível, pensando no sistema mundial que é o capitalismo, por conta de realidades de extrema miséria, como no continente africano. Tratou-se somente de uma situação passageira e localizada, incapaz de ser generalizada, além do que limitada dentro dos próprios marcos da sociedade de classes.

Outras variantes denunciam corretamente como fracassada a via social-democrata e produtora de traidores de classe, mas não se desfaz da ideologia que continua a manter como centro da estratégia revolucionária: o Estado. Mantém a este uma função organizadora sob o verniz de ser uma política proletária. Fala-se em socialização dos meios de produção, de fim da propriedade privada, mas se mantém firme quanto a uma suposta necessidade de centralização estatal, ainda que posta como transitória. Os caminhos escolhidos na Revolução Russa têm aqui o principal exemplo.

Como já dito ao longo deste documento, pensamos a transformação da sociedade, a revolução social, tratando o protagonismo da classe trabalhadora como eixo central em nossa orientação política. Acreditamos ser esse o maior diferencial do anarquismo e a melhor justificativa para a afirmação de seu projeto enquanto alternativa na luta de classes, bem definida nos dizeres de Bakunin: “a liberdade sem o socialismo é o privilégio, a injustiça; o socialismo sem a liberdade é a escravidão e a brutalidade”.

Para nós, a crítica às ideologias estatistas em suas variáveis (reformista e revolucionária) como alternativas para cumprir o objetivo emancipatório, o qual deu razão a origem das idéias e práticas socialistas, é ponto batido. Não porque tudo já tenha sido dito ou por nós nos considerarmos auto-suficientes. Bem longe disso, mas sim, por simplesmente constatar que muitas das avaliações que a esquerda socialista de maneira geral fez frente a seus erros e práticas, que tendem a aparecer como “novidades”, já haviam sido prognosticadas pelos anarquistas. E não foram por “chute”, e sim, fruto de uma análise teórico-política bem definida. Nossa escolha por princípios de federalismo político e autogestão, ação direta e protagonismo de classe, nos apresenta, na história das lutas sociais, grandes obras e a possibilidade de visualizar um mundo que ponha fim aos exploradores e opressores. Sim, sabemos que não é tarefa fácil. Mas, o que pode parecer dar mais força e garantia de vitória, um caminho aparentemente mais óbvio e curto, pode na verdade ser apenas mais um canto da sereia e se pautar pela própria forma de fazer política dos dominadores.

Ao não centrar como eixo na construção de um projeto político o protagonismo dos trabalhadores, a conseqüência será a reprodução de formas de opressão. Seja como a de uma maioria que faz e uma minoria que pensa (ou uma casta intelectualizada e burocrata), seja a de uma localidade territorial ou “fração da classe trabalhadora” que faz a política e, uma outra, que a executa. O horizonte que almejamos não comporta tais métodos. Daí nossa proposição no fortalecimento da organização e luta dos trabalhadores, desenvolvendo e potencializado o exercício de seu protagonismo como forma de construir Poder Popular no local de trabalho, no espaço geográfico. É por isso que somos anarquistas.

-II-

Seção político-organizativa

a. Organização de intenção revolucionária e seu marco estratégico

A mobilização das massas deu a força necessária para conquistas históricas do povo, sem a organização em sindicatos, em associações de moradores, movimentos sociais e populares etc., essas vitórias não passariam de desejos individuais. Na medida em que esses desejos encontram um espaço que se transforma em construção coletiva, ele tem a possibilidade de ser vitorioso. São esses espaços que nos trazem um potencial e que podem apontar para transformação radical da sociedade.

No entanto essa é apenas uma das possibilidades. Espaços que aglutinam a classe em reivindicações mais imediatas não se transformam espontaneamente em espaços onde possa ser gestada a luta por nossa emancipação. Para termos êxito nessa tarefa precisamos de uma organização política, anarquista e que esteja nas lutas do povo.

As idéias socialistas podem se desenvolver em determinada categoria social sem, no entanto, existir a influência de uma organização política naquele meio. Militantes do meio social podem tender a se aproximar dessas idéias sem necessariamente estarem politicamente organizados, porém, nunca chegarão a levar acabo um projeto de transformação com uma visão global, tática e estratégica da realidade, algo só alcançado a partir de uma organização política.

Sem um organismo político que esteja inserido no contexto das lutas populares, fica muito difícil ultrapassar os limites das lutas apenas reivindicativas e imediatas para um projeto de ruptura. A consciência de classe oprimida e explorada precisa ser despertada dentro do seio da própria classe. À medida que se luta por algo mais imediato como um aumento salarial, mas se cria um espírito coletivo que permita o desenvolvimento de uma consciência de classe, que mostre que a totalidade das reivindicações necessárias para a vida das pessoas não são compatíveis com o sistema capitalista em que vivemos e que só a luta em conjunto de toda a classe pode nos trazer uma nova lógica de organizar a sociedade, desenvolve-se as condições objetivas para lutar por um programa máximo, para além das reivindicações imediatas.

É tarefa da militância da organização política catalisar esse processo. Sendo que a organização política não pode estar à frente dos movimentos populares. Ela deve estar inserida nesses espaços para ajudar ombro a ombro com seus companheiros de classe na construção do projeto de Poder Popular.

A classe, através de suas organizações de massa, levará a frente o projeto revolucionário de mudanças e a organização política estaria inserida nesse contexto, sendo organismo responsável por despertar a ideologia da classe, possibilitar a ela uma consistência teórica e disputar suas idéias na construção desse projeto, sempre por dentro. A atuação da organização deve ser norteada por esse sentido, pois, não podemos esperar que esse projeto apareça espontaneamente.

É através da organização que podemos observar o mundo a partir de uma teoria transformadora, estando ela devidamente inserida nas lutas do povo. A partir dessa interpretação da realidade traçamos um plano de intervenção, um plano que permita canalizar os esforços de construção do Poder Popular. Porém, temos a compreensão e a cautela, de que nem tudo depende somente dos esforços da militância e da mobilização da classe. Há uma série de fatores que são externos à nossa vontade e esforços, pois estão em relação direta com a conjuntura de cada época, do contexto singular em que a luta popular desenvolve-se.

Por isso nos reivindicamos de intenção revolucionária, visto que uma organização revolucionária não se auto-proclama, ela se faz num processo de acordo com as condições objetivas e subjetivas de cada época e no cumprimento das tarefas necessárias, mirando o objetivo final almejado: fim das classes sociais e do Estado, a igualdade e a liberdade. Para tal, agimos com os pés no chão, buscando estar cientes tanto dos limites mais objetivos de nosso tempo, quanto no trabalho de desenvolvimento do protagonismo e consciência de classe.

Acreditamos que o projeto de transformação social não se dá apenas em uma localidade, numa cidade ou até mesmo num país. Esse processo só pode ser levado a cabo em todas as suas mais amplas conseqüências se for internacional. Não precisamos, no entanto, esperarmos uma articulação internacional para podermos agir.

Temos a responsabilidade, primeiramente no chão em que pisamos e precisamos saber que esse trabalho não pode ser isolado, em algum momento deve fazer o diálogo com o processo macro. Esse tipo de atuação só pode ser conseguida se orientada por um projeto político de intenção revolucionária. Somos, por isso, internacionalistas, mas de um internacionalismo que pensa na construção do Poder Popular em cada canto que se espalha e se solidariza, que não parte de um centro diretor e conserva a autonomia necessária para a efetivação da política dos trabalhadores.

b. Prática política e método de organização de luta:

minoria ativa e protagonismo de classe

É fundamental termos bem claro a diferença entre o nível político e o nível social. Diferente de uma organização de massa, que tem uma estrutura de funcionamento balizada por um programa amplo que abarque no seu interior a maior parte dos setores da classe, uma organização política tem uma estrutura melhor definida orientada por um programa específico, algo que dê a unidade e força suficiente para balizar sua militância em seu importante papel.

Acreditamos em uma organização anarquista especifista e que se direcione para uma militância social. Nos organizamos em um nível político específico (o da organização anarquista, com programa político determinado) e que, de acordo com seu programa, coordena sua militância inserida nas lutas e organizações de massa (nível social).

A atuação social dos militantes de nossa organização é a razão dela existir e essa atuação se faz dentro das instâncias de organização de massa ou de base: sindicatos, entidades estudantis, movimentos de bairros, etc. Na medida em que consideramos local estratégico de atuação de nossa militância os diversos espaços criados pela classe, nós traçamos uma política de atuação para cada local de intervenção contínua de nossa militância. Essa concepção visa garantir nossa expressão política na disputa de nossas idéias. Elas não concebem o engessamento dos movimentos onde atuamos. Elas são disseminadas no seu interior e sua conseqüência primordial é a intenção de colaborar com determinado movimento em sua luta, sempre em sintonia com os ideais transformadores.

Não nos movemos pelo crescimento de nossa organização, nos movemos pelo engrandecimento da luta do povo e confiamos que o desenvolvimento dessa luta é quem propiciaria o crescimento de nossa organização, não como um fim, mas como uma das conseqüências. De nada adianta ter uma organização grande se toda essa grandeza não representa de fato uma mobilização das bases sociais e só representa demarcação de território e reprodução de práticas políticas que não condizem com um processo de ruptura.

Isso tudo implica em uma intervenção singular, pois sabemos que ao militarmos numa organização social ampla nós estamos disputando idéias, seja com grupos organizados ou não. Por mais que possamos algum dia ter a hegemonia em alguma entidade, ela nunca será vista como pertencente à organização política, nossas idéias não penetrarão nela por correia de transmissão, mas por convencimento.

Nossa prática política diferenciada, a forma de se dedicar às tarefas do dia a dia da organização e o esforço pela construção de um projeto coletivo, é nossa principal forma de propaganda e método de despertar mais pessoas para a luta. Não basta termos uma boa militância no seu local de atuação se seus esforços não são acompanhados pelos demais. De nada adianta estarmos na diretoria de determinado sindicato se isso não for conseqüência de uma mobilização pela base. Se a grande maioria de um movimento social não for protagonista de suas próprias lutas esse projeto não está com consistência e há muito ainda o que fazer.

Dessa maneira, nos organizamos como minoria ativa, que, orientada por um programa político, age socialmente. Nossa tarefa é colaborar no desenvolvimento dos ideais transformadores junto aos trabalhadores, que de certa forma já existem como potencialidade. Não queremos entregar um projeto pronto e esperar que as massas o sigam. Nossa intenção é colocar nossas idéias a partir de uma prática política que se orienta pelo protagonismo dos trabalhadores, construindo o projeto em conjunto.

c. Estrutura e funcionamento da organização especifista

Para funcionar de forma organizada e poder atuar positivamente nas instâncias sociais, nossa organização se estrutura por: unidade teórica, unidade de ação, responsabilidade coletiva e federalismo. Esses princípios organizativos são identificados no documento histórico da Plataforma de Organização, do grupo de exilados russos Dielo Trouda (Causa do Povo) em 1926. Também fazem parte do método e concepção de organização política iniciado por Bakunin.

A unidade teórica de uma organização é fundamental. É a forma particular de como enxergamos a vida, como enxergamos a realidade que nos cerca, que tipo de interpretação damos a tudo isso. Essa teoria está a serviço da luta de classes e evidentemente toma partido dos setores explorados. Na medida em que temos um modo particular de interpretar essa realidade construiremos as possibilidades de transformação de maneira consistente. Como a teoria tem compromisso com a luta de classes, ela é forjada na medida em que evolui o projeto de Poder Popular.

A teoria da organização é a teoria de todos os membros desta, o que não implica necessariamente na ausência de divergência secundárias e pontuais entre seus membros. Mas, para atuarmos com força e à altura de nossos ideais, temos que partir de uma interpretação única dessa realidade e defender um só projeto, caso contrário não estaríamos agindo como uma organização, mas como um conjunto de individualidades.

A unidade de ação garante a atuação da organização como um único bloco. Podemos ter uma mesma teoria que oriente as diferentes pessoas do grupo e, mesmo assim, termos diferentes táticas de ação. Atuaremos de acordo com a opinião da maioria, que será a opinião da organização. Após um processo de discussão coletiva, onde todos têm a mesma oportunidade de esboçar sua opinião, havendo divergências vota-se e se atuará de acordo com a maioria.

Isso se afasta de posturas dogmáticas ou autoritárias, na medida em que se entende que não estamos nos movimentos sociais para fazer deles mera expressão de nossa vontade, pois uma tática política geral, deve sempre ser posta em respeito e diálogo com as singularidades de cada espaço e na base de uma prática política que preza por uma ética militante.

A responsabilidade coletiva contribui na unidade da organização, pois não há espaço para desvios individualistas dentro de uma organização anarquista especifista. Cada membro tem a responsabilidade política pela organização, bem como a organização tem responsabilidade política por cada membro. Cada pessoa contribui para o projeto da organização e esse é fruto da discussão coletiva.

Agimos por federalismo, pois é o modelo ao qual consideramos ideal para o funcionamento da sociedade emancipada e justa. Ele não pode ser colocado em prática como modelo de funcionamento de maneira geral para sociedade nas características que ela possui hoje, porém é de extrema importância que em nossas organizações populares e em nossa própria organização política atuemos com o método federativo, não só por ser o método mais eficiente e coerente com nosso projeto, como também, por ser formador de militância e seu próprio exercício ser uma forma de propaganda revolucionária quando aplicado nas organizações de base/massa.

Federalismo deve significar respeito às decisões pela base, respeito às particularidades dos locais onde a organização atua, mas sem perder a unidade que une os diversos setores da organização. Deve entender também que à medida que a organização cresce e se complexifica, necessita de instâncias diferenciadas e um maior esforço para garantir que a delegação esteja respaldada com um acúmulo de discussão das instâncias de base. Em resumo, o modelo de organização federativa orienta-se pelo respeito às particularidades locais, baseado em uma unidade teórica e de ação.

Nossa organização parte do pré-suposto de que todos os seus membros têm que estar inseridos em algum espaço de militância social. Não nos dividimos no setor que pensa e no que executa. Todos têm que atuar socialmente e levar essas características para o seu local de militância. Estando em um sindicato terá que trabalhar como os outros trabalhadores para que sinta na pele o que os outros sentem, para entender a realidade vivenciando e assim colaborar de maneira mais eficiente no projeto de construção do Poder Popular.

Sempre haverá os que se dedicam com mais empenho à elaboração teórica, mesmo assim, deverão estar inseridos em algum espaço de militância. Da mesma forma os restantes dos membros farão obrigatoriamente parte de espaços de reflexão. Por mais que não tenham possibilidade de se tornarem “teóricos”, têm que fazer parte dos espaços de elaboração seja teorizando de maneira mais profunda, seja dando sua interpretação sobre os fatos que envolvem sua militância de maneira simplificada.

O afastamento da militância pode desenvolver uma categoria de dirigentes que ordenam para outros executarem, o que vai de encontro a um projeto autogestionário de uma nova sociedade. De maneira inversa, o militante que se ocupa somente das questões de sua militância tende a perder em seu horizonte o próprio papel da organização política anarquista na construção de um projeto de ruptura.

Portanto, todo militante deve atuar politicamente segundo o programa da organização e contribuir na construção do mesmo, deve participar da instância deliberativa da organização e dos espaços organizados por ela, deve estar inserido socialmente em alguma frente e colaborar em suas propagandas (organização e frente de luta), exercidas tanto na prática política realizada, quanto nas idéias difundidas.

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